Nos últimos dias de novembro de 2019, reuniu-se em Uberaba um pequeno grupo de médicas e médicos veteranos. Alguns são da região, outros vieram de longe especialmente para o evento: Arlindo Pardini (de Belo Horizonte), Benito Ruy Meneghello, Hiroji Okano e Nilza Martinelli (de Uberaba), Honório Gomes de Mello (de Goiânia), José Ernesto Teixeira (de Brumadinho) e Zoé Sellmer (de São Paulo). Tinham em comum – além dos cabelos brancos, da longa experiência e da consagração na profissão que escolheram – a emoção de um reencontro: comemoravam os 60 anos de sua formatura na então Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro. No final do distante ano de 1959, a FMTM concretizou a ousadia de um antigo sonho ao entregar os diplomas para sua primeira turma de doutorandos. E Minas Gerais passou a ter, de fato, mais uma faculdade de medicina.
Década de 1920 – a recém inaugurada Penitenciária de Uberaba, prédio construído pelos arquitetos italianos Luigi Dorça e Miguel Laterza. Foto do acervo do Arquivo Mineiro |
Desde o início do século XX, Uberaba era um centro médico importante. Viajantes chegavam todos os dias das imensidões do sertão brasileiro em busca de atendimento. Com o tempo, multiplicaram-se os consultórios médicos, as clínicas, casas de saúde e hospitais. Era comum que os filhos dos pecuaristas e das demais famílias abastadas da cidade fossem estudar medicina fora – em geral no Rio de Janeiro ou em São Paulo, mas por vezes até no exterior. Formados e especializados, retornavam a cidade para exercer a profissão. A eles se juntavam médicos de vindos de outras partes do Brasil, atraídos pela promessa de uma clínica farta. Muitos conciliavam a prática médica com as atividades rurais – uma combinação que se tornou usual na região.
1953 (circa) – Prédio da penitenciária em obras para receber a Faculdade de Medicina. Fotógrafo não identificado. |
Minas Gerais já era o terceiro estado mais populoso do Brasil, mas contava somente com a Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Fundada em 1911 e mais tarde incorporada à Universidade Federal (UFMG), foi lá que formou-se médico o futuro presidente da república Juscelino Kubitschek de Oliveira. Em janeiro de 1951, JK elegeu-se governador de Minas Gerais pelo PSD, com apoio de diversos partidos e a promessa de dar uma cara nova ao estado. Além do binômio “Energia e Transporte”, Juscelino queria aumentar o número de médicos. Decidiu apoiar duas iniciativas de abrir novas faculdades: uma em Juiz de Fora e outra no Triângulo Mineiro.
Na época, Uberaba dava mostras de que estava vencendo uma antiga maldição: desde a fugaz experiência com o Instituto Agrotécnico (que entre 1895 e 1899 formou uma única turma de engenheiros agrônomos) a cidade colecionava fracassos nas tentativas de montar escolas de ensino superior. Até que, em 1947, o professor Mário Palmério – já dono do Colégio Triângulo e da Escola Técnica de Comércio – colocou em funcionamento uma Faculdade de Odontologia e, quatro anos mais tarde, um curso de Direito. Paralelamente, as Irmãs Dominicanas davam início à montagem do que se tornaria a FISTA – Faculdades Integradas São Tomás de Aquino. Mas com JK à frente do governo mineiro, Palmério – que havia sido eleito deputado federal pelo PTB – resolveu dobrar a aposta e buscou seu apoio para abrir na cidade uma faculdade de medicina,
04 de maio de 1957 – Juscelino Kubitschek vem a Uberaba para a inauguração da Exposição de Gado Zebu. Estudantes se manifestam, pedindo a federalização da Faculdade de Medicina. Foto do acervo do Arquivo Nacional.
03 de maio de 1956 – Já como Presidente da República, Juscelino Kubitschek visita Uberaba e inaugura oficialmente o prédio da FMTM. Foto do acervo do Arquivo Nacional. |
1960c – Prédio da FMTM nos primeiros anos de funcionamento da faculdade. Foto do acervo do IBGE. |
Junho de 1968 – Alunos e professores da UFTM defronte ao prédio da faculdade. Foto publicada em matéria da revista semanal Manchete, do Rio de Janeiro. |
Julho de 2013 – Prédio da Faculdade de Medicina da UFTM ao cair da noite. Foto de André Lopes. |
Embora não fosse da região, Juscelino tinha um histórico de proximidade com Uberaba. Em 1934, acompanhou o interventor Benedito Valadares na visita a Exposição Agropecuária e deu início ao hábito de frequentar as feiras de gado zebu. Isso não impediu que, em abril de 1952, a cidade fosse palco de uma assombrosa revolta popular contra um aumento de impostos estaduais promovida por seu governo, que só foi contida por tropas enviadas da capital e resultou em dezenas de uberabenses presos. O motim deixou claro que crescia a força do movimento separatista do Triângulo Mineiro, que tinha em Palmério um dos seus entusiastas.
Velha raposa política, JK aproveitou a oportunidade para estreitar os laços com a região. Poucos dias depois da revolta, desembarcou na cidade em companhia do presidente Getúlio Vargas, de quem era fiel aliado. Reza a lenda que teria prometido transformar o belo prédio da praça do Mercado – construído em estilo eclético na década de 1910, por Luigi Dorça e Miguel Laterza, para sediar uma penitenciária estadual – em uma faculdade de medicina. No ano seguinte, um projeto de lei foi aprovado pela Assembleia Legislativa mineira cedendo o prédio e fornecendo apoio financeiro estadual ao projeto. Coube ao presidente Vargas autorizar o funcionamento do curso em 23 de março de 1954. O médico Mozart Furtado Nunes foi escolhido como o primeiro diretor, à frente de um grupo inicial de 18 professores. No mês seguinte, JK veio a Uberaba para dar pessoalmente a aula inaugural para os alunos aprovados no primeiro vestibular.
Estudar medicina deixava de ser um privilégio das famílias muito ricas da região mas, por alguns meses, os calouros da nova faculdade dividiram o grande prédio, ainda em obras, com algumas dezenas de detentos, que continuavam encarcerados no andar superior. “Eles gostavam da nossa presença: nos pediam cigarros, comida e conselhos médicos”, contou no evento o Dr. Hiroji Okano. Parte das aulas eram ministradas nas salas e laboratórios da Faculdade de Odontologia.
Eleito Presidente da República em 1955, JK relutou, mas acabou cedendo à pressão dos estudantes e da comunidade uberabense que pediam a federalização da escola, Em 1960, Uberaba passou a contar com seu primeiro curso superior público e gratuito. Com o passar dos anos, a FMTM ganhou cursos de pós graduação, programas de pesquisa e residência médica, angrariando respeito e prestígio dentro da comunidade científica brasileira e internacional. A partir do final dos anos 1980, novos cursos de graduação e pós graduação foram abertos na área de saúde. Em 2005, durante o governo do presidente Lula, a FMTM foi enfim transformada em uma Universidade Federal.
(André Borges Lopes / Uma primeira versão desse texto foi publicada na coluna Binóculo Reverso do Jornal de Uberaba em 08/12/2019)