Jovens que acompanham as disputas entre Lewis Hamilton e Sebastian Vetel provavelmente já ouviram seu nome. Mas fora do círculo de fãs da Fórmula 1, poucos se lembram de Juan Manuel Fangio, ídolo de Airton Senna e lenda histórica da principal categoria do automobilismo mundial ao conquistar cinco títulos (1951, 1954, 1955, 1956 e 1957) e dois vice-campeonatos (1950 e 1953). Desempenho que só seria superado quase meio século mais tarde, pelo heptacampeão alemão Michael Schumacher.
O jornal uberabense "O Triângulo" do dia 24 de junho de 1941 noticia a passagem pela cidade dos competidores da "Prova Automobilística Presidente Getúlio Vargas". |
O que bem pouca gente sabe é que o argentino Fangio conquistou a segunda vitória importante de sua carreira em uma corrida de longa distância disputada no Brasil. E que uma das etapas dessa prova teve como palco a cidade de Uberaba, onde os competidores passaram a noite de 23 para 24 de julho de 1941. Juan Manuel Fangio (nascido em 1911 na pequena cidade de Balcarce, próxima a Mar del Plata) estava em nossa cidade no dia em que completou 30 anos de idade. Ele começava a despontar nas pistas do país vizinho e havia sido convidado a disputar no Brasil o “I Grande Prêmio Automobilístico Getúlio Vargas”.
O cartaz promocional da prova, ainda com a data em maio A corrida acabou adiada para os dias 22 a 28 de junho de 1941. Foto do acervo do Arquivo Nacional |
No início de 1941 a 2ª Guerra Mundial devastava a Europa. Depois de conquistar a França e desfechar uma campanha de bombardeios contra a Inglaterra, Hitler direcionava suas ambições para a União Soviética, invadida no final de junho. Argentina e Brasil, assim como os Estados Unidos, seguiam neutros no conflito. A guerra havia paralisado as atividades automobilísticas no velho continente, e os pilotos das Américas buscavam alternativas. Fangio, que estreara no automobilismo em 1936, corria há pouco mais de dois anos na categoria “Turismo Carretera”, que fazia muito sucesso em seu país: provas longas, disputadas em estradas de rodagem, com veículos de passeio adaptados. Em outubro de 1940 havia vencido sua primeira prova importante: o “Gran Premio Internacional del Norte”, disputado entre Buenos Aires e Lima, no Peru.
O Chevrolet Coupé 1940 de Juan Manuel Fangio alinhado para a largada em Vigario Geral, no Rio de Janeiro, na manhã do dia 22 de junho de 1940.
Foto do acervo do Arquivo Nacional.
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O Brasil vivia sob a ditadura do Estado Novo, implantado por Getúlio Vargas em 1937. Nos anos anteriores, o automobilismo nacional havia deslanchado com a inauguração, no Rio de Janeiro, do “Circuito da Gávea”, sinuoso trajeto de rua entre o Leblon e São Conrado, onde eram disputadas provas perigosas e emocionantes. Pilotos como Manuel de Teffé, Chico Landi e o italiano Carlo Pintacuda começavam a ganhar fama. Em 1939, o Automóvel Clube do Brasil planejou uma prova turística de longa distância, não competitiva: o “Rallye Interestadual Presidente Getúlio Vargas”. Em 1940, foi aberto o Autódromo de Interlagos, em São Paulo.
No início de 1941, anunciou-se para o mês de maio o “I Grande Prêmio Automobilístico Getúlio Vargas”: uma ambiciosa prova competitiva de 3.371 km extensão, dividida em sete etapas, com a maior parte do percurso cruzando as precárias estradas de terra de então. A prova acabou sendo adiada em um mês: teve início no dia 22 de junho no Rio de Janeiro. As etapas eram: 1) 22/06 – Rio de Janeiro - Belo Horizonte (541 Km.); 2) 23/06 – Belo Horizonte – Uberaba (606 Km.); 3) 24/06 – Uberaba – Goiânia (547 Km.); 4) 26/06 – Goiânia Barretos (592 Km.); 5) 27/06 – Barretos – Poços de Caldas (512 Km.); 6) 27/06 – Poços de Caldas – São Paulo (490 Km.); 7) 28/06 – São Paulo – Rio de Janeiro (443 Km.).
Quase todos os carros na disputa eram modelos norte-americanos – Fords, Chevrolets, Willys e Hudsons – “envenenados” pelos preparadores. Pilotos estrangeiros foram convidados a participar: da Argentina, vieram de navio Oscar Galvez e Juan Manuel Fangio, trazendo suas máquinas; do Uruguai, veio Jorge Mantero. Os argentinos também trouxeram os mecânicos que disputavam as provas a seu lado, no papel de navegadores: Galvez corria com o irmão Juan; Fangio com o amigo Antonio Elizalde, um excelente memorizador de caminhos.
Embora rivais nas pistas, Galvez e Fangio eram amigos e combinaram participar da prova como uma equipe, rachando as despesas e dividindo os prêmios que ganhassem. Galvez corria com um Ford V8 – o modelo favorito da maioria dos pilotos – enquanto Fangio trouxe seu Chevrolet 1940 verde escuro, com motor 6 cilindros – o mesmo com que vencera a prova anterior. Chegaram ao Brasil com boa antecedência e, na semana antes da corrida fizeram juntos uma viagem de reconhecimento das estradas. Convidados, nenhum dos pilotos brasileiros se interessou em acompanhá-los. Fangio também visitou os representantes brasileiros da Chevrolet em busca de patrocínio, que lhe foi negado: todos tinham certeza que um Ford venceria a prova. Sem recursos, conseguiu um empréstimo, colocando o carro como garantia.
Na manhã do dia 22 de junho, 39 competidores se enfileiraram para a largada no bairro de Vigário Geral. Os carros partiram em sequência, com a ordem sorteada, em intervalos de um minuto. O que valia era a corrida contra o relógio, somando-se os tempos de cada etapa. No primeiro dia, o Ford V8 de Oscar Galvez, deixou em segundo lugar o Chevrolet de Manuel Fangio, com pequena vantagem. O uruguaio Mantero chegou em Belo Horizonte com o terceiro melhor tempo. Nove competidores ficaram pelo caminho.
Em Uberaba encerrava-se a segunda e tinha início a terceira etapa da prova. Juan Manuel Fangio completou 30 anos nessa data e ganhou "de presente" a liderança da prova.
Às 8:00 do dia 23, os carros largaram da capital mineira rumo a Uberaba obedecendo a ordem da classificação do dia anterior. Depois de cruzar Araxá e o Barreiro, tomaram a estrada de Sacramento, de onde foram a Conquista e chegaram em Uberaba pelo bairro Amoroso Costa. A linha de chegada era defronte à “casa de filtros” da Codau, onde Touring Club do Brasil montara a mesa de controle e um palanque. O Automóvel Clube de Uberaba providenciou a equipe de cronometristas: Achiles Riciopo, Lélio Sartini, Heitor Matos e Heli Mesquita. Leo Derenusson, revendedor da Ford em Uberaba, participou da organização.
"Prova Presidente Getúlio Vargas" no Triângulo Mineiro, sobre um mapa de 1928. O trajeto utilizava as estradas de terra da época, frequentemente acompanhando os caminhos de trem. |
Oscar Galvez foi o primeiro a cruzar a linha, às 14:35. Dez minutos depois chegou Fangio, que havia ultrapassado Galvez no trajeto, mas perdeu a ponta poucos quilômetros antes de Araxá por conta de um pneu furado. O Ford V-8 de Mantero ficou novamente em terceiro, seguido de perto pelo brasileiro Júlio Vieira, da cidade de Ribeirão Preto. Os carros vieram em cortejo até a praça Rui Barbosa, onde foram recebidos com festa defronte a prefeitura. Os pilotos se revezaram ao microfone da rádio local PRE-5, que transmitiu o encerramento da etapa. Radio-amadores locais retransmitiram os resultados para os jornais das capitais.
Na manhã dia 28 de junho de 1941, o Chevrolet Coupé 1940 de Fangio cruza a cidade de Bananal-SP, na sétima e última etapa da "Prova Presidente Getúlio Vargas".
No dia seguinte, Manuel Fangio completava 30 anos de idade e, por coincidência, tinha o mesmo número 30 em seu carro na prova. O jornal carioca “Correio da Manhã” conta que, às 8:00 uma “incalculável multidão” acompanhou a largada dos 19 carros restantes para a terceira etapa. A estrada velha de Uberlândia dava início ao trecho mais difícil do trajeto: estradinhas cortando fazendas, cheias de pontes estreitas e mata-burros traiçoeiros. Galvez partiu em primeiro e manteve a posição ao passar pelos povoados de Palestina e Buriti. Mas logo após cruzar a ponte sobre o Rio Tijuco, perdeu o controle do seu Ford e capotou espetacularmente – felizmente maiores danos ou ferimentos. Às 9:43, Fangio surpreendeu os uberlandenses ao despontar em primeiro na cidade vizinha. Oscar Galvez só passou 15 minutos mais tarde, em quinto lugar e com o teto do carro bastante amassado.
De volta ao Rio de Janeiro, Juan Manuel Fangio cruza a linha de chegada da última etapa da "Prova Presidente Getúlio Vargas", no bairro de Campinho. Embora tenha concluído essa etapa em segundo lugar, Fangio ganhou a prova na somatória dos tempos.
Foto do acervo do Arquivo Nacional
Galvez recuperou posições e chegou em Goiânia com o segundo melhor tempo, mas seu erro acabou sendo decisivo: Fangio dominou com tranquilidade a maior parte das etapas seguintes. Os dois argentinos sofreram ainda uma punição na sexta etapa (por um erro no trajeto) e Fangio ficou atrás do amigo na etapa final. Mas sagrou-se campeão na classificação geral da prova, que completou com um tempo de 43 horas e 12 minutos, média de velocidade de 86,347 km/h. Oscar Galvez ficou em segundo e o brasileiro Júlio Vieira em terceiro. Apenas nove competidores conseguiram completar o trajeto.
Antonio Elizalde e Juan Manuel Fangio sentados no capô do vitorioso Chevrolet Coupé 6 cilindros, em anúncio publicado no jornal carioca "A Noite" após a vitória. |
Duas semanas antes, as concessionarias Chevrolet no Rio de Janeiro haviam negado patrocínio ao piloto argentino porque davam como certa a vitória dos favoritos Ford V-8 "Flathead".
Além do troféu e dos 15 contos de reis pelo primeiro lugar, Juan Manuel Fangio ganhou um prêmio extra. Nos dias seguintes, ele e seu mecânico Elizalde apareceram montados no valente Chevrolet, em anúncios pagos pelos arrependidos revendedores da marca nos jornais brasileiros. O carro vitorioso, impecavelmente restaurado, está hoje exposto no "Museo Fangio", em Balcarce.
(André Borges Lopes)