Quando se pensa em sanfoneiros na música brasileira, o primeiro nome que vem a cabeça é o do pernambucano Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião” – ou mesmo o do seu conterrâneo e sucessor artístico Dominguinhos. Pouca gente sabe que quando Gonzagão despontou nas rádios cariocas no início da década de 1940, o caminho do sucesso para os tocadores de sanfona já havia sido aberto e desbravado por outro pioneiro: o uberabense Antenógenes Silva – conhecido como “Mago do Acordeon” – que, no ano de 1938, já contava com mais de 100 músicas lançadas em disco pelo selo Odeon.
Antenógenes Honório Silva nasceu em Uberaba em 30 de outubro de 1906, primeiro de dez filhos do serralheiro Olímpio Jacinto da Silva e de Dona Maria Brasilina, descendentes empobrecidos do famoso Barão de Ponte Alta. A necessidade fez com que estudasse pouco e trabalhasse desde cedo. Ainda criança, encantou-se com a sanfona, que o pai tocava e teve paciência de lhe ensinar. Sua mãe contava que o menino Antenógenes ia para o centro da cidade e demorava a voltar, embevecido com as músicas que ouvia nos gramofones das lojas da Rua do Comércio. Chegando em casa, tirava as melodias de ouvido e de memória na sanfona paterna.
Uberabense Antenógenes Silva – conhecido como “Mago do Acordeon” |
Adolescente, era convidado para tocar em bailes e festas da cidade. Cismou que queria um acordeon de verdade, mais caro e sofisticado que a velha sanfona de oito baixos do seu Olímpio. Economizou os trocados que ganhava nas festas até conseguir comprar um. Em pouco tempo sua fama chegava em Ribeirão Preto, onde ia tocar nos fins de semana. Tinha 21 anos quando resolveu tentar a sorte na capital paulista. Um amigo o viu de mala e cuia na estação da Mogiana e perguntou, “vai pra onde?”. “Pra São Paulo, estudar música, trabalhar e tocar”, respondeu, “um dia volto aqui para dar um concerto”. “Estudar para dar concerto aqui não precisa não”, retrucou o amigo. O trem já partindo, Antenógenes lhe disse: “Santo de casa não faz milagre”. E correu para o mundo.
Em São Paulo, seu assombroso talento foi logo reconhecido. Tornou-se atração das rádios Educadoras e da Record. Venceu o preconceito que havia contra a sanfona: nas suas mãos, o arcodeon se transformava em instrumento de música erudita. Gravou os primeiros discos pela R.C.A. Victor e passou a ser convidado para tocar com os mais famosos cantores do rádio. Em 1934, firmou contrato com a Odeon e com a sua parceira de vida: a também radialista Lea Silva, pioneira dos programas femininos na rádio brasileira.
Antenógenes Honório Silva |
Entre o final dos anos 1930 e a década de 1950 o casal transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde juntaram dinheiro, consagração e fama. Antenógenes deixou os programas de música regional (num deles foi sucedido por Gonzagão, que o considerava como um dos seus mestres) e partiu para outros gêneros: valsas, polcas, maxixes e tangos. Chegou a fazer sucesso no Uruguai e na Argentina, onde tocou com Carlos Gardel e Libertad Lamarque.
Sua esposa, Lea Silva, farmacêutica de formação e violinista amadora, comandava no rádio um programa com dicas de beleza e culinária. Juntos os dois montaram um laboratório de cosméticos, que fabricava o então afamado Creme de Beleza Marsileia. Já bem de vida e famoso, Antenógenes retomou os estudos: concluiu os cursos primário e ginasial e, não satisfeito, formou-se em química industrial. Em 1957 passou uma temporada na Europa, participou de um concurso promovido pela fábrica de gaitas Honner, na Alemanha, tendo sido reconhecido como um dos maiores acordeonistas do mundo. Apresentou-se também no Conservatório de Paris.
Creme de Beleza Marsileia |
No Brasil, compôs e gravou centenas de músicas, sozinho ou em parcerias. A mais famosa delas é a valsa “Saudades de Matão” (1938), em parceria com Jorge Galati e Raul Torres, que foi objeto de uma longa disputa pelos direitos autorais.
Menos famosa, mas não menos bela, é "Saudades de Uberaba", parceria com Oscar Louzada, que nunca encontrou um letrista disposto a complementar com poesia essa homenagem à nossa terra.
Participou também da gravação pioneira de “Tico-Tico no Fubá” ao lado do autor Zequinha de Abreu e fez a única gravação registrada de Dona Stella Maris, a esposa de Dorival Caymmi, que é vocalista na sua valsa “Saudade Profunda”.
No início dos anos 1960, o casal decidiu erguer do zero a Rádio Federal na cidade de Niterói. Mas um enfarte fulminante levou Lea Silva em dezembro de 1961. Antenógenes seguiu com a rádio e a fábrica por mais dez anos, quando vendeu tudo e se aposentou. Amante fiel das músicas antigas, continuou apresentando-se esporadicamente em bailes e homenagens. Sem filhos, faleceu em 2001, aos 94 anos, no mais completo ostracismo. Nenhum grande jornal do país publicou seu obituário.
(André Borges Lopes / texto originalmente publicado no Jornal de Uberaba, em 27/05/2018)