Filmes Soviéticos Década 1920
A Mágica da Arte
Guido Bilharinho
Os anos da década de 1920 caracterizam-se como os de maior efervescência formal da história do cinema. Não que anteriormente, ainda nos anos 10, não se preocupasse com a arte cinematográfica. Ao contrário. Ao lado da tendência espetaculosa de Cabíria (Cabiria, Itália, 1914), de Giovanni Pastrone, e da síntese espetáculo-linguagem-montagem de Griffith, vicejaram correntes essencialmente estéticas, a exemplo do film d’art francês (Henri Levedan e Charles Le Bargy) e da vanguarda italiana (A. G. Bragaglia).
Mas, é na década de 1920 que o desenvolvimento e amadurecimento dessa linha vanguardista assume grandes proporções, principalmente, na percepção e consciência do fenômeno cinematográfico. À evidência, como sempre acontece, por força do natural desdobramento e aprofundamento das experiências anteriores.
Assim, sincronicamente com as teoria e prática da montagem desenvolvidas por Eisenstein, exercita-se a vanguarda experimental (Dulac, Duchamp, Man Ray, René Clair, Léger, L’Herbier, Ruttmann, Cavalcanti, Buñuel, etc.) e, ainda, a concepção do “cinema olho” exposta e efetivada pelo cineasta soviético Dziga Vertov em contraposição à filmagem ficcional estruturada em cima de trama dramática com utilização de atores, estúdios e décors ou cenários montados.
Para ele, o cinema deveria ser a amostragem artisticamente elaborada de cenas e imagens captadas diretamente no cotidiano do ser humano e nas paisagens natural e construída por seu trabalho.
Vertov, pois, opunha o gênero documentarista ao ficcional, não considerando aquele apenas uma das possíveis variáveis da materialização cinematográfica da realidade.
Se o cinema comercial abastarda a vida, falsificando-a, e deturpa a arte, aviltando-a ou negando-a, o cinema como tal atinge proporções ilimitadas, permitindo - e só com isso viabilizando - mediante a construção e elaboração ficcional, atingir e expor o cerne da existência humana, como o faz a literatura, evidentemente apenas nas grandes obras, que o são justamente por isso, a exemplo, em seu próprio país, dos romances de Dostoievski e Tolstoi e dos dramas de Tchekov, Gorki e Gógol.
Se, sob esse aspecto, a concepção de Vertov é restritiva, já em si mesma é do mais relevante alcance, não só na estruturação, enriquecimento e ampliação do documentário cinematográfico, como no descortinamento de novas possibilidades da câmera no plano estético.
Seu Um Homem Com Uma Câmera (Cheloveks Kinoapparatom, U.R.S.S., 1929), é além de tudo, obra de arte, na qual a beleza da imagem contém a beleza do objeto que a compõe, bem como esta constitui aquela num ato simultaneamente temático e formal, em que um depende do outro para existir e se manifestar.
A simbiose imagem-objeto e vice-versa processa-se no instante mesmo em que se perfaz uma e se evidencia o outro, criando realidade nova e autônoma que se concretiza e se mantém por força da técnica submetida à criatividade artística.
O resultado dessa atividade configura-se em belíssimas visualizações de belíssimos objetos transfigurados esteticamente numa valoração que transcende seus contornos físicos e materiais.
O olho da câmera, as tomadas, enquadramento e filmagem da matéria efetuam, técnica e artisticamente, a mágica da arte, que tudo transforma, perpetua, descobre e revela.
As imagens (e motivos) do filme de Vertov contêm essa beleza transfigurada e transfiguradora. São do mesmo gênero das de Walter Ruttmann, em Berlim, Sinfonia de Uma Metrópole, de 1927, realizado antes, mas, influenciado pelas ideias de Vertov, consubstanciadas em Kino Glaz (1924), feito anteriormente à Berlim.
Mas, vendo-se um lembra-se forçosamente do outro, conquanto sejam mais líricas e suaves as imagens (forma e conteúdo) do mestre soviético e mais vigorosas as do cineasta alemão.
A destacar-se, ainda, no filme de Vertov, algumas rápidas superposições de imagens e outras experiências vanguardistas, a exemplo da montagem horizontalizada em duplo écran, diversamente de sua apresentação verticalizada e tríplice por Abel Gance, em Napoleão (Napoléon, França, 1927).
Além disso, salienta-se a reiterada focalização dos bondes e, ainda, diferentemente de Ruttmann, a montagem alternada entre algumas situações fílmicas. Ou seja, não obstante documentarista, Vertov não resiste à montagem temática ao mostrar o desenvolvimento de ações humanas, mesmo que não articuladas e relacionadas com outras de igual natureza, com o que, então, ter-se-ia autêntica estruturação ficcional.
(do livro Clássicos do Cinema Mudo. Uberaba,
Instituto Triangulino de Cultura, 2003)
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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 (https://revistadepoesiadimensao.blogspot.com.br) e autor de livros de literatura, cinema e história do Brasil e regional, publicando desde setembro último um livro por mês no blog https://guidobilharinho.blogspot.com.br.