QUANDO FALA O CORAÇÃO
A Análise Psicanalítica
Guido Bilharinho
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Filmes de Hitchcock dos Anos 40 |
Ao tempo em que realiza Quando Fala o Coração (Spellbound,
EE. UU., 1945), Alfred Hitchcock já havia feito pelo menos
seis
outros filmes nos Estados Unidos.
Essa sua primeira fase estadunidense, finalizada em Agonia
de
Amor (The Paradine Case, 1947), possui características
diferentes
daquela iniciada com Festim Diabólico (Rope, 1948), que
inaugura
seu período áureo, terminado com Os Pássaros (The Birds,
1962),
período, contudo, entremeado de filmes destituídos de valor,
a
exemplo do frustrado e frustrante A Tortura do Silêncio (I
Confess,
1952) e do muito pior ainda Sob o Signo do Capricórnio
(Under
Capricorn, 1949).
A mencionada primeira fase singulariza-se pela utilização do
preto e branco, recursos financeiros e técnicos acanhados,
forte
influência da produção, e, principalmente, procura e preparo
de
caminho para pleno amadurecimento e domínio da arte
cinematográfica.
Com tudo isso, a maioria de seus filmes dessa época já
apresenta
bom cinema conquanto ainda não contenha a malícia, a
complexidade
e o requinte temático e formal que caracterizam as obras
posteriores.
Se em seus mais importantes filmes o tema não é propriamente
o
objeto da ação, não passando esta de veículo ou de
ilustração para
assunto mais importante, atinente à condição humana, em
Quando
Fala o Coração a proposição é a própria estória. Ou seja, o
cineasta
elege e contextualiza determinada problemática, sem prejuízo
de
também atingir outras questões.
A questão, no caso, constitui o bloqueio que o consciente
estabelece por meio da amnésia como proteção do indivíduo
contra
fato ou acontecimento profundamente traumático. A ação é a
exaustiva análise a que o protagonista é submetido em todo o
decorrer
do filme para furar esse bloqueio e restabelecer a plena consciência
e
purgação da memória.
Hitchcock desenvolve convencionalmente esse processo, porém,
de maneira segura, objetiva e técnica, sendo até criticado,
improcedentemente, por essa última particularidade. É que o
cineasta
equilibra a terapia psicanalítica com outros elementos
dramáticos, a
fim de não restringir o filme à pura sessão de análise.
Assim, em primeiro lugar e cinematograficamente, mistura-a
com as vicissitudes dos protagonistas passando por diversos
lugares e
situações.
Enfatizando, pois, a particular situação do indivíduo
traumatizado na infância por episódio chocante e terrível, a
ação
calcada no processo de sua análise psicanalítica revela o
drama
subjacente.
Assinale-se que se o cinema mostra frequentemente fatos de
incrível e cruel violência, talvez nenhuma - nem mesmo a
pungente
cena protagonizada pelo arquicriminoso de Os Suspeitos (The
Usual
Suspects, EE.UU., 1995), de Bryan Singer - seja tão funesta
e trágica
como a que, quase ao final do filme, ressuscita na obstruída
memória
do protagonista o acontecimento que o traumatiza, marca e
fragiliza
daí em diante.
Se o referido incidente, por todos os elementos que o
compõem
e pela maneira contida e competente como é conduzido,
provoca no
espectador considerável impacto, imagine-se sua intensidade
no ânimo
de quem não só o presencia como, principalmente, o
protagoniza!
Além desses temas centrais, que se fundem, como dito
(obliteração emocional e o processo de sua análise), o
cineasta ainda
aborda duas outras questões também umbilicalmente ligadas à
ação: o
amor e sua força como motivação e mola propulsora da ação,
antes,
ainda, elemento propiciador de compreensão e confiança
humana e,
finalmente, a ambição.
O amor permeia todo o filme, constituindo um do fios
condutores do enredo, o que se materializa no título
brasileiro e,
possivelmente, no título original, que significa “encantado
(a),
enfeitiçado (a)”, que, dada sua ambiguidade, tanto pode se
referir ao
amor da heroína quanto ao trauma do protagonista, tudo
indicando,
porém, concernir a este último.
A ambição desenfreada mostra a feia face do ser humano
levado
por ela até mesmo a crime hediondo.
Assim, Quando Fala o Coração enfoca drama de amor e o
exercício de atividade que compartilha, por sua abrangência,
dos
gêneros romance, policial e, ainda timidamente, do suspense.
Sua
estruturação, condução da linha narrativa, enquadramentos,
direção e
desempenho dos atores, segurança direcional geral e
adequação
rítmica fazem com que o interesse do espectador mantenha-se
permanentemente desperto, não obstante a tecnicidade
(conquanto
interessante) da dialogação dos acontecimentos desenrolada
no
sanatório.
A salientar, ainda, os eventos ocorridos no saguão de grande
hotel novaiorquiano e a recorrente, e algumas vezes poeticamente
realizada, cena no trem. Como sempre, nos melhores filmes de
Hitchcock, feita apenas com os elementos e duração
indispensáveis,
uma de suas características mais importantes.
(do livro O Cinema de Hitchcock e Woody Allen.
Uberaba, Revista Dimensão Edições, 2017)
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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da
revista internacional de
poesia Dimensão de 1980 a 2000
(https://revistadepoesiadimensao.blogspot.com) e
autor de livros de literatura, cinema e história do Brasil e
regional, publicando
atualmente no Facebook os livros Obras-Primas do Cinema
Brasileiro e Brasil: Cinco
Séculos de História.