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segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O defunto

Já notaram que meu personagem favorito é o meu pai. Isso se deve ao fato da admiração que eu sempre tive por ele, além do que ele foi uma das pessoas mais espirituosas que eu conheci e contava casos como ele só.

Quando crianças, depois do almoço eu, os irmãos e os primos, se estivessem em casa, deitávamos todos na cama e ele contava as histórias da “mão cabeluda”, personagem inventada por ele que poderia a qualquer momento sair de baixo da cama pra nos pegar.

Não raro, ele pegava no sono contando o episódio e como nós ficávamos com medo de descer da cama por causa da mão cabeluda, dormíamos a siesta também, dando assim um alívio para minha mãe fazer as tarefas do dia-a-dia.

Esse fato que passo a relatar, aconteceu em uma quarta-feira de um mês de maio num dia frio e sem sol, com uma garoa caindo intermitentemente.

Na época meu pai tinha uma pequena ilha na região de delta, onde todo fim de semana, se em Uberaba estivesse, juntava a tralha, e junto com minha mãe e o amigo inseparável Adib Sarkis, partiam na sexta-feira à tarde ou sábado de manhã, rumo à “Ilha do Kappa” para a pescaria de Piaus, Taguaras e afins na bem cuidada Brasília que dormia na frente da minha casa, amarrada pelo para-choques com uma corrente, que por sua vez era chumbada ao meio fio em frente a nossa casa, pois nessa época não existia garagem lá.

Pois nessa quarta-feira já citada, de manhã, meu pai estava na Lotérica trabalhando e sem motivo algum, decidiu ir até a ilha. Me pediu para tomar conta da loja e saiu sozinho sem pegar a tralha, sem chamar ninguém e nem a roupa trocou.

Chegando lá, meu pai desceu o barranco para pegar a canoa, que ficava também trancado por corrente, em uma figueira em frente à ilha.

Como não havia levado nem remo, fez uso de um pequeno remo reserva, que deixamos escondido para a eventualidade de um possível esquecimento.

Mas ao invés de atravessar os 10 metros que separam a ilha do barranco, meu pai, sem motivo algum, embicou a canoa para cima, em direção a uma pequena baía que se formava logo acima da ilha e era coberta quase que completamente por vegetação e onde nós costumávamos pegar iscas para pescar os Dourados.

Entrando na Baía ele avistou o motivo desse relato.

Boiando de bruços e inchado já, ele se deparou com um homem morto, meio que encoberto pela vegetação. Diz ele que nem surpreso ficou pois parecia que ele já sabia o que iria fazer ali e com o pedaço de corda que deixávamos no bico da canoa, amarrou o defunto pelo punho em um galho mais robusto da vegetação e voltou para o pequeno porto onde ficava a canoa.

Tudo isso foi feito maquinalmente, como se fosse uma missão, dizia ele.

Voltando para Uberaba, no caminho ele veio pensando: e agora? o que eu faço para não me envolver nisso? Se eu for na polícia, vou ficar lá o resto do dia e vão me chamar um monte de vezes até a conclusão do inquérito.

Chegando aqui ligou para o meu tio Natal (Benito Caparelli) que sendo advogado, estaria mais apto para dar uma solução para o acontecido.

Meu tio então falou para ele ligar na polícia e quando perguntassem o nome dele, desse um nome qualquer e nem mais uma informação que pudesse identificá-lo.

Meu pai ligou então para a polícia e informou o ocorrido, bem como a localização exata do corpo e quando perguntaram quem estava falando, meu pai que já tinha escrito o nome fictício no papel para não gaguejar, respondeu: aqui é o Geraldo Ferreira Rodrigues, eu sou pescador. E sem esticar a conversa, desligou o telefone apressadamente.

No outro dia, sai a manchete em letras garrafais no Lavoura e Comércio:

CORPO ENCONTRADO NO RIO GRANDE e no corpo da matéria o seguinte texto: “foi encontrado por um pescador no rio grande, próximo à margem, o corpo do senhor Geraldo Ferreira Rodrigues que por não ter contusões aparentes de perfurações e nem contusões, parece tratar-se de um caso de suicídio. As diligencias estão sendo feitas para a apuração do caso”.

Meu pai ao ler a notícia, comentou com o meu tio:

- Ô Benito, confundiram tudo. Esse nome aí foi o que eu dei para a polícia como se fosse o meu; ligo de novo lá?

- Liga nada, deixa quieto que depois eles resolvem isso.

Como o fato não teve repercussão e o jornal não trouxe mais nada a respeito, o caso foi esquecido e meu pai contava o fato aos amigos achando muito estranho as circunstancias do achado.

Mal pôde ele acreditar quando exato um ano depois, entra na loteria um pescador amigo dele, que às vezes participava como cozinheiro de pescarias no Paranaíba e entabularam o seguinte diálogo:

- Bom dia Caparelli, como vai?

- Ô Zé Rodrigues, está sumido, rapaz, tem pescado?

- Nada, tô com obras andando e tô muito sem tempo e agora tô sozinho.

O dito era carpinteiro de profissão e trabalhava de meia com o irmão.

- Uai, seu irmão não tá de sócio com você mais não?

O desfecho:

- Tá nada, ele morreu tem um ano; suicidou pulando da ponte de Delta.

Aí meu pai ligou o sobrenome do amigo com o nome que ele deu à polícia.

- Como chamava seu irmão, Zé?

-Geraldo, respondeu ele.

-Geraldo de que? Perguntou meu pai já todo arrepiado.

- Geraldo Ferreira Rodrigues.

Era o nome do defunto que por estranha coincidência meu pai havia escrito no papel para informar à polícia.


Marcelo Caparelli