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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O homem bomba

As pescarias da turma do meu pai eram famosas entre a comunidade pesqueira de Uberaba.
Pelo menos duas vezes por ano a turma se reunia e iam pescar no rio Paranaíba, que era famoso por ser extremamente piscoso.

Naquela época, não havia conscientização alguma e todo peixe pescado era embarcado, independentemente de tamanho. Não existia cota pra trazer peixes, muito menos período de piracema, onde se proíbe a pesca.

Jaús de mais de 50kg era uma constante nessas pescarias, bem como dourados, pacus, piaparas e piracanjubas.

A única regra para os pescadores era de que os peixes só poderiam ser pegos usando varas de carretilhas ou molinetes.

Armadilhas não eram toleradas e redes eram usadas somente para pegar iscas, que seriam os lambaris.
Nessas pescarias que reuniam de 10 a 15 pescadores, era imperioso que houvesse alguma pegadinha com algum dos pescadores. Geralmente essa pegadinha recaia sobre o novato da turma como em todo lugar.

Nessa pescaria que eu passo a relatar agora, foram reunidos doze pescadores sendo oito assíduos da turma.

Também fez parte da comitiva, um cozinheiro, que também pescava, mas não pagava e um convidado que às vezes ia com a turma, pois a turma frequente dele era outra.

Esse um era o Tonico Correia, famoso por suas pegadinhas, acompanhado por um sobrinho que nunca havia participado da turma do Caparelli.

O transporte era feito em dois veículos, sendo que um caminhãozinho levava a tralha toda da pescaria na carroceria e na “boléia” iam um pescador dirigindo, tendo ao seu lado o cozinheiro.
O outro veículo era um caminhão de transporte de soldados utilizados na segunda guerra que era coberto por lona removível para ser retirada quando em dias quentes o ambiente ficasse abafado demais.
Os assentos eram dois bancos de madeira acolchoados e contínuos, afixados de um lado e de outro da carroceria.
Esse caminhão, que foi adquirido pela turma, só era utilizado para esse fim e quando a turma não o estivesse usando, ele era alugado para outras turmas, rendendo algum para o caixa da próxima pescaria.
Depois de todos aboletados na carroceria, uns 30 km de viagem, o papo entre eles ia animado até que o sobrinho do Tonico resolve participar da conversa e para indignação geral diz que não gostava de pescar de vara e molinete.

O Sr. Adib, muito do meticuloso e assumindo a posição de advogado da turma dá uma lição de moral no sobrinho:

- Aqui, não! Aqui ninguém pesca de rede. Só anzol. Se você não trouxe vara, o Tonico que te trouxe, te empresta uma das dele.

Meio que constrangido, o sobrinho retruca:

-Não, “seu Adib” eu não pesco com rede não, e para piorar a explicação, saiu-se com essa:

- Eu pesco é com bomba, é só soltar ela no rio e vocês vão ver o que é pegar peixes, enche uma caixa daquelas grandonas em dez minutos.

-Olha ela aqui, continuou ele.

Disse isso e abriu sua sacola, tirando de lá um artefato parecido com uma granada, só que maior, e com um pavio bem curto.

Dentro do caminhão o alarido foi grande. Todos execrando a atitude do moço e o Tonico que ia na boléia junto com o Adalgiso, que era o motorista, ficou indiferente ao movimento lá atrás.

Muito vermelho e sem graça, o sobrinho guardou a bomba, pediu desculpas e disse que nas outras turmas eles sempre levavam uma bomba, para garantir que trouxessem peixes se a pescaria não fosse proveitosa.

Parecia que ele estava prevendo: chegando já de tardinha no Paranaíba, acomodaram-se no rancho do Zé Faustino e o tempo que já estava nublado, fechou de vez. A chuva começou fraquinha e foi aumentando aos poucos até se tornar uma tempestade que durou até às duas da manhã, quando por fim cessou.

A conversa rolou sobre se o rio ficaria barrento, coisa que atrapalharia demais a captura de peixes e todos torcendo para a tempestade não ter caído nos afluentes que desaguam no Paranaíba, pois isso faz com que os pequenos ribeirões derramem muita água barrenta no rio principal.

Parece que as preces não foram atendidas, pois pela manhã, encontraram um rio muito sujo, tanto na margem mineira, quanto na margem goiana.

A pescaria estava programada para 5 dias e nos quatro primeiros dias, a contabilidade dos peixes ia bem abaixo do esperado e pelo pique da remada, a divisão dos peixes não contemplaria nem 1 kg para cada pescador.

Na reunião da tarde, quando todos estavam reunidos na mesa grande esperando o jantar, o sobrinho volta ao assunto e comenta com meu pai:

- Caparelli, naquele remanso ali em baixo onde estou pescando com meu tio, é só soltar a bomba que dá pra encher as duas caixas térmicas.

Quem estava mais perto era o Otacílio Martins que escutando a conversa repreendeu novamente o soltador de bomba.

- Aqui não! E em alto e bom som completou: se não pegarmos mais nada manhã, dividiremos o que foi pescado.

Meu pai então fez o advogado do diabo e passou a defender o sobrinho.

- Deixa ele, Otacílio, se ele pesca assim, é problema dele, não nosso.

- Deixa nada, interrompeu o “Prego” (Jair Padeiro), ele é um moleque, isso que ele é, nem devia ter vindo.

-Também não precisa ofender, né, Prego? O rapaz é novo, deixa ele.

E o Tonico, só de cabeça baixa, carregando a culpa de ter levado o sobrinho inconveniente.

O clima ficou pesado e poucos ficaram para a roda de conversa noturna, sendo que os poucos que ficaram, prosearam por poucos minutos e também foram dormir.

O ultimo dia foi ainda pior. Apesar do sol ter dado o ar da graça há dois dias, o rio continuava bem barrento e só uma dupla voltou com um dourado de uns 9 kg que foi consumido assado sem tempero, enrolado na folha de bananeira e servido com molho à parte no jantar.

De manhã, depois de acomodadas as tralhas, repetiram as disposições nos caminhões e levantaram acampamento.
Como fazia muito calor, a lona da carroceria foi retirada e a viagem de volta se iniciou e o sobrinho que estava sentado na ponta do banco, falou pro meu pai que estava sentado no mesmo banco, mas lá no fundo (nessas alturas, só meu pai dava bola pra ele):

- Caparelli, eu não posso voltar com essa bomba prá casa, é perigoso guardar isso; já que não soltei no rio tenho que explodir ela em um pasto qualquer aí; pede pro Adalgiso parar em um descampado pra eu soltar ela.

Meu pai avisou o Adalgiso que querendo ficar livre daquilo rápido, parou o caminhão.

- Solta aí, disse ele.

- Não dá Adalgiso, disse meu pai, tá muito perto do rancho e o Zé Faustino pode achar ruim.
Seguiram em frente, e alguns quilômetros depois, o Adalgiso para novamente o caminhão.

- Também não dá, disse o sobrinho, muito perto de arbustos, pode pegar fogo.

Aquilo se repetiu mais umas quatro vezes e os companheiros todos de cara amarrada, quando ele finalmente mandou parar caminhão.

- É aqui. Disse ele e tirando a bomba da sacola.
– Caparelli, me passa o fósforo.

Meu pai lá do fundo, tira a caixa de fósforos do bolso da camisa e joga pra ele.

Pessoal apreensivo com o desenrolar do ato, não tira os olhos da mão do homem bomba.

Ele, nervoso e tremendo muito, risca uns quatro palitos antes de conseguir acender o pavio, que como eu disse lá no começo, era bem curto.

Finalmente o pavio acendeu e ele querendo se ver livre da bomba rapidamente e todo atrapalhado, ao invés de atirar a bomba no mato e devolver a caixa de fósforo para meu pai, fez exatamente o contrário:

Com toda a força do braço atirou a caixa de fósforos no mato e displicentemente, rolou a bomba no chão da carroceria para no rumo do meu pai e gritou:

- Toma o fósforo Caparelli!

Nem é preciso dizer que não sobrou um pescador na carroceria.

Todos se atropelaram pulando o gradil que servia de encosto e em um átimo de segundo eles já estavam a uns 100m de distância, deitados no mato e esperando a explosão.

Minto; ficaram no caminhão os que sabiam da pegadinha, ou seja, meu pai, o sobrinho e o Tonico Correia na boléia que rindo muito escutaram a bomba fazer um silvo comprido tipo shshshshshshshsshshshshshiuuuuuuu e apagar.

Meu pai nunca me contou como eles saíram vivos depois dessa, o certo é que o sobrinho nunca mais pescou com a turma. Porem ele nem era pescador. Foi arrumado pelo Tonico, que armou essa com o meu pai, só para esse fim.

Marcelo Caparelli