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segunda-feira, 21 de junho de 2021

Velharias e velhacarias

Outro dia, conversei com um velho conhecido da época em que eu comercializava bezerros. Relembramos o que as pessoas chamam de “no nosso tempo”: o passado. A atividade pecuária mudou bastante nesse período; muita água passou por debaixo da ponte. Apareceram tecnologias inovadoras e diferentes práticas de manejo. Antes, tudo era primitivo, rudimentar.

Meu negócio era comprar e vender: comprava bezerros e vendia depois de uns meses, um ano. Os animais ganhavam peso, cresciam, mostravam suas potencialidades ou defeitos. Eram tratados, vermifugados, separados em lotes e postos à venda. Era assim que funcionava.

A rotina consistia em acordar cedo, percorrer uma extensa região, estradinhas precárias, na maioria das vezes sem sinalização, atravessar pontes, mata-burros, me perder em entroncamentos, rodar bastante até encontrar o vendedor. Aí, começavam as negociações – a parte mais importante da atividade –, não sendo raro durarem um dia inteiro. Pechinchar, regatear, reprovar e elogiar; o principal era tirar proveito das oportunidades. O pessoal dizia: “o negócio tem de ser bom para os dois”. Só não podia ofender o camarada. Negócio fechado, o caminhão viria buscar dali a uns dias. E se trocarem algum animal? O jeito era cortar a vassoura do rabo dos bezerros para evitar velhacarias.

Muitos bezerros recém-desmamados chegavam ao curral berrando, chamando a mãe, chorando o desmame precoce. Tentavam escapar, passar nas cercas de arame farpado e sumir nas capoeiras. Devidamente marcados, recebiam cuidados, definia-se quem era “cabeceira” e “fundo”, isto é, os melhores, os mais promissores, e os refugos. Nessa hora, falavam os vaqueiros mais experientes.

Após a marcação a ferro quente, era preciso matar carrapatos, extrair os bernes e colocar esterco ou chumaços de pano velho embebidos em preparados à base de cresóis nas feridas. O ferrão, vara comprida com ponta de metal, intimidava, direcionando o fluxo dos animais nos currais.

Periodicamente, eram reunidos para conferências e apartações. Uma prática comum consistia em passar óleo queimado – óleo usado de motor –, misturado com um inseticida qualquer, bastante tóxico e utilizado com pouco zelo, nas bicheiras. Cada um com seu galão e pincel artesanal, feito com crina de cavalo, espalhava a mistura nas feridas dos bezerros.

Se fosse necessário, realizavam-se intervenções cirúrgicas. Feitas a canivete, sem assepsia ou anestesia, consistia em jogar o animal no chão, amarrar bem forte e executar o serviço. Às vezes, a depender do diagnóstico, faziam-se sangrias, “para purificar o sangue”. A impressão que se dava era de estarmos na Idade Média. Se deixassem, alguns fariam o mesmo com as pessoas.

Um dia, muita coisa mudou, não necessariamente para melhor: aumentou o desmatamento e o uso de agrotóxicos; a burocracia foi informatizada, esperteza virou informação falsa, e a ciência não venceu os preconceitos e a estupidez. Apesar dos avanços, é estranho ver muita gente fazendo e pensando as mesmas coisas de cinquenta anos atrás, na roça e na cidade; ficaram presos no passado?

Renato Muniz B. Carvalho

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

ESQUINAS

Esquinas existem, e são muitas, algumas famosas, outras anônimas. Interessam-me as esquinas do tempo, aquelas que são como pontos de inflexão, as que se comportam como as viradas que a vida dá quando menos se espera. Tem também as que são como empuxos de sorte ou de azar, se é que isso existe. E as reviravoltas: parece que são de um jeito, mas mudam de repente. Que o digam os que já passaram por uma delas!
As esquinas nos dizem que o tempo passa, se transforma, some de vista, vai longe, para reaparecer mudado, quando menos se espera. Às vezes desaparece para sempre, fica só a lembrança. Chego à conclusão que se trata de um movimento meio que inevitável, não adianta espernear. O problema é o rumo a tomar, por vontade competente ou não, o que deixa as pessoas perdidas, sem direção, sem saber se dobram uma esquina ou se tomam um café. Vai saber!
Virar uma esquina se compara a passar uma página de um livro. Se a história é boa, a gente vira logo a página, vai rápido, se espanta, se emociona, segue lendo. A curiosidade nos surpreende e a leitura se acelera. Se não empolga, às vezes nem percebemos que passamos por uma esquina. Você sabe quando passou por uma esquina? Percebe quando as coisas estão mudando? Ou se fecha no seu próprio mundinho?
Nos anos 1960, que foi uma época de dobrar esquinas, os meninos eram proibidos de fazer muitas atividades. Quantas regras, quantos cuidados excessivos, crendices e histórias assustadoras para disciplinar o que podia e o que não podia ser feito! Não podia comer manga com leite, não podia andar de costas, não podia apontar para uma estrela senão nascia uma verruga na ponta do dedo, não podia abrir um guarda-chuva dentro de casa… Muito cuidado! Meninos não deviam fazer caretas, pois se batesse um vento era grande o risco de o rosto ficar torto pra sempre. Devia-se evitar pegar o último biscoito da travessa, senão você não se casava. Entrar na água, numa piscina, no mar ou num rio, após o almoço, era uma temeridade. As tias mais velhas diziam que entortava a boca, que causava constipação, que podia provocar cãibras e morrer afogado! Assustador, não acha? Penso até que elas tinham a sua parcela de razão, mas a vigilância e as regras eram exageradas, autoritárias.
Sempre foi necessário dobrar esquinas antes da hora, de subverter as normas e o chamado bom comportamento. Senão o mundo não anda. Quais são as regras hoje? Já pensaram nisso? Como seremos julgados pelos caras do futuro? Quais são nossos medos e preconceitos? Quais são as coisas que reputamos como corretas sem pensar nelas? Aquelas coisas que estipulamos normais de antemão, sem refletirmos sobre seu significado? Já é hora de dobrar algumas esquinas e deixar o velho mundo para trás, pois seu declínio é visível.
Renato Muniz B. Carvalho
10/04/2016