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quarta-feira, 25 de setembro de 2019

UBERABA DE MINHA INFÂNCIA

Madrugada. Ao longe os grunhidos de um cão quebram o silêncio da noite enluarada. Acordo. Abro a janela e vejo, no céu de nuvens tartamudas, a lua cheia triunfante no espaço sideral que Deus lhe reservou. Os prédios e árvores mais altos quebravam os raios auríferos que banhavam nossa Uberaba no seu natalício. 

Não sei como ou siquer porquê mas, lentamente, desprende-se de meu corpo a alma, quem sabe o espírito ou apenas a mente e vai se misturando às ruas, praças, à cidade enfim. Encontro-me com o passado em épocas diferentes naquele passeio cósmico nos locais onde passei minha infância e juventude. As saudades estão guardadas silenciosamente em minha memória.

Inicio a jornada a bordo da Rede Mineira de Viação no trecho Amoroso Costa estação da Rede que ficava onde hoje se ergue a Rodoviária. Os trilhos na rua Cel Joaquim de Oliveira Prata, a fumaça estonteante, as brasas entrando pelas janelas e lá fora poucas casas, além do apito estridente e prolongado: assim era a chegada de quem vinha da capital montanhesa, após mais de 30 horas. Chego à estação e, em frente, vejo o Prado. Enorme arquibancada servia aos aficionados em corridas a cavalo. Desativado, passou a receber alunos após as aulas para um futebol animado. Me vi ali com o Erasto, o Luiz Humberto, Milberto Scaf, Antônio Franco, Hely Tarquínio, Luiz Hueb, Ildeu Bertoldi, Lester, Nilo, Adalberto, Romes Castanheira e tantos outros colegas do Colégio Triângulo.

Saindo do local dirijo-me ao mangueiral que havia na Vila Maria Helena. Quarteirões das famosas mangas Sabino entre as ruas Cruzeiro do Sul e Major Eustáquio. As mesmas mangas que se encontravam nos mangueirais da Avenida da Saudade e da antiga rua Carangola, aos milhares de pés desta fruta adorada principalmente pelas crianças e adolescentes. Desço até o local onde seria no futuro a Av Santos Dumont: mato denso, córrego límpido e aberto, pequenas lagoas na época de chuva onde nós, moleques, nadávamos , éramos felizes e não sabíamos... De lá avistávamos a Chácara da Manteiga onde hoje é a Av Pedro Salomão. Nos fundos da Chácara construíamos “entancados” no córrego, feitos com troncos de árvore, mato, argila e o que mais aparecesse. O que nos interessava era ver um “poço” para nadar. Havia muita água limpa, árvores, 
pássaros, liberdade para a meninada...Agostinho, Bené, Bugre, Zicada, Sapatão, Ticoco, Ely Boy, Nego Boy, Delcino, Varistim, Vicente, Pedroca, Geraldão e tantos outros “moleques” da Vila...

Continuando meu passeio espiritual vejo-me na Praça Ruy Barbosa onde, no coreto, a Banda do 4º BPM povoa os ares com acordes românticos: Aqueles Olhos Verdes, Perfídia, Tequila... No cine São Luiz enorme fila para assistir Doroty Dandridge e Harry Belafonte em Carmen Jones. Enquanto isto nas escadarias da Catedral D.Alexandre profere o Sermão das 7 Palavras para centenas de fiéis atentos e cheios de fé.

Desço até a Leopoldino de Oliveira, passando pela porta do centenário Lavoura e Comércio que, em um mural na parede, anuncia a abertura da semana santa com suas comemorações religiosas. Próximo vejo o Bar do Mosquito, o salão de snooker do Sarong, a livraria ABC, a farmácia do Sr Zequinha, a escola Normal, a inesquecível Notre Dame e tantos outras saudades...

Na Leopoldino o córrego aberto e ainda límpido, coroado por árvores e ausência de poluição. Armazém Central, cine Metrópole e lá no final da Artur Machado a frondosa gameleira...

Na porta do Grupo Minas Gerais vejo centenas de colegas: Rodrigo Sarmento, Carlos, Daniel Fabre, Benedito, Agostinho, Puccega, Rosália Bunazar, Auricedes, Miriam, Maria Antonieta, Maria Auristela, e tantas mais. Também vi as mestras, lideradas por d. Esmeralda Rocha Bunazar, eterna diretora e Maria de Lourdes, Tereza de Melo, Rita, Elza e muitas outras...

Subo a Guilherme Ferreira que existia somente até a Carlos Rodrigues da Cunha. Me vejo saindo do Colégio Triângulo junto aos mestres Cavatorta, Olga Oliveira, Kalapodopulus, Nair, Terezinha Maciotti, Perez, Guimarães, Silveira, Puhler, Koshiba, Pepão, Pepinho, Marinho, Lemos, o disciplinário Manoel... Dali para frente fundos de quintais e o córrego que serpenteando era coberto por pinguelas nas ruas Constituição e Dr Ludovice. Mais à frente a frondosa “Mata das Freiras”.

No Abadia escutei o som do alto falante da igreja: “ave Maria, cheia de graças...” velas nas mãos, contritos, os fiéis acompanham a procissão mais tradicional da região; “o senhor é convosco, bendito sois vós...” – pés descalços, terços nas mãos, pedras na cabeça... tudo é fé, tudo esperança em N Senhora; “ entre as mulheres, bendito é o fruto...” – e lá se vai a procissão... Terminada a mesma o alto falante continua com músicas da época: – “alguém oferece a alguém e este alguém sabe quem”. Que beijinho doce, foi ela quem trouxe, de longe prá mim – era campeã.

Mas o sonho acordado está acabando... fecho a janela e retorno ao meu leito onde durmo, retornando de onde era muito feliz, e não sabia...

(Dedico este artigo a meu mestre de Português, saudoso prof José Guimarães e à minha querida Uberaba. Infelizmente há controvérsia sobre a data certa do aniversário. Voltarei ao assunto oferecendo uma sugestão para acabar com este infausto acontecimento)


(Hely Araújo)


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