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quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Obras-Primas do Cinema Europeu


A FONTE DA DONZELA
A Lancinante Beleza

Guido Bilharinho


A FONTE DA DONZELA


Se poesia é beleza e tragédia é dor e se beleza não combina com sofrimento, e se não lhe for antípoda é pelo menos incompatível, como se elaborar obra em que esses dois elementos tão díspares se unam simbioticamente, concorrendo de iguais modo e conformidade para sua formação?
         Se uma é beleza, pureza, alegria, vida e outra é sua negação?
         É possível?
         É possível.
         É exatamente isso que Ingmar Bergman faz em A Fonte da Donzela (Jungfrukällan, Suécia, 1959), um dos mais belos e ao mesmo tempo mais trágicos filmes já realizados.
         Inserido nos limites da narrativa, excede-a em perfeição. Confinado na necessidade de estabelecer a sucessão de atos, atitudes e acontecimentos que a compõem, infunde-lhe precisão, conexão e intrínseca dinâmica, emanada da articulação de seus diversos elementos. Obrigado a organizar e distender o fio narrativo, o faz com vigor, segurança e determinação. Tangido a lidar com anjo, demônios e seres humanos, os reúne no mesmo espaço e em idêntico tempo, confrontando-os. Compelido a destilar todo o horror desse encontro e embate, exercita-o, no entanto, humana e poeticamente.
         Assim, se se tem de um lado a inocência, a pureza, a beleza, a poesia enfim encarnada, e, de outro, a impulsividade e a bestialidade em seu mais alto grau, logra-se, como resultado desse heterogêneo amálgama, filme em que a dignidade humana é contemplada tanto quanto sua face oposta nos exatos termos em que se manifestam, constituindo monumento desse compósito extravagante.
         Toda essa confluência, que se transforma em conjunto trágico, violento e mortal, expõe-se em ambientes construídos em consonância com a vinculação do tempo e do espaço em minudências físicas e gestos pessoais compatíveis e exatos. Se neles e nisso ressumbra a realidade, nos exteriores explode e vigora a poesia da imagem na paisagem vista (e sentida) em sua harmônica beleza, onde se cruzam a mocidade que a tonifica e os cérberos abjetos que a poluem e conspurcam.
                Nessa dimensão neutra, mas, generosa e propiciatória, a maldade impõe-se à bondade, destruindo-a dupla e sucessivamente, antes, ao conspurcá-la, depois, ao eliminá-la, em sequência de beleza imagética, que mais ainda exacerba a inaudita brutalidade com que se manifesta e se materializa.

(dos livros eletrônicos O Cinema de Bergman e Fellini -
Se poesia é beleza e tragédia é dor e se beleza não combina com sofrimento, e se não lhe for antípoda é pelo menos incompatível, como se elaborar obra em que esses dois elementos tão díspares se unam simbioticamente, concorrendo de iguais modo e conformidade para sua formação?
         Se uma é beleza, pureza, alegria, vida e outra é sua negação?
         É possível?
         É possível.
         É exatamente isso que Ingmar Bergman faz em A Fonte da Donzela (Jungfrukällan, Suécia, 1959), um dos mais belos e ao mesmo tempo mais trágicos filmes já realizados.
         Inserido nos limites da narrativa, excede-a em perfeição. Confinado na necessidade de estabelecer a sucessão de atos, atitudes e acontecimentos que a compõem, infunde-lhe precisão, conexão e intrínseca dinâmica, emanada da articulação de seus diversos elementos. Obrigado a organizar e distender o fio narrativo, o faz com vigor, segurança e determinação. Tangido a lidar com anjo, demônios e seres humanos, os reúne no mesmo espaço e em idêntico tempo, confrontando-os. Compelido a destilar todo o horror desse encontro e embate, exercita-o, no entanto, humana e poeticamente.
         Assim, se se tem de um lado a inocência, a pureza, a beleza, a poesia enfim encarnada, e, de outro, a impulsividade e a bestialidade em seu mais alto grau, logra-se, como resultado desse heterogêneo amálgama, filme em que a dignidade humana é contemplada tanto quanto sua face oposta nos exatos termos em que se manifestam, constituindo monumento desse compósito extravagante.
         Toda essa confluência, que se transforma em conjunto trágico, violento e mortal, expõe-se em ambientes construídos em consonância com a vinculação do tempo e do espaço em minudências físicas e gestos pessoais compatíveis e exatos. Se neles e nisso ressumbra a realidade, nos exteriores explode e vigora a poesia da imagem na paisagem vista (e sentida) em sua harmônica beleza, onde se cruzam a mocidade que a tonifica e os cérberos abjetos que a poluem e conspurcam.
                Nessa dimensão neutra, mas, generosa e propiciatória, a maldade impõe-se à bondade, destruindo-a dupla e sucessivamente, antes, ao conspurcá-la, depois, ao eliminá-la, em sequência de beleza imagética, que mais ainda exacerba a inaudita brutalidade com que se manifesta e se materializa.

(do livro eletrônico O Cinema de Bergman e Fellini -


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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e regional. -
Obras-Primas do Cinema Europeu -
https://www.facebook.com/opcineuropeu/)

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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e regional.


Cidade de Uberaba

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Obras-Primas do Cinema Europeu


UM DIA NO CAMPO

Percepção e Sensibilidade



Guido Bilharinho

Um Dia no Campo (Partie de Campagne, 1936)


A filmografia de Jean Renoir (1894-1979), conquanto extensa, variada e procedida em vários países e diversas circunstâncias, possui pelo menos três obras-primas: Um Dia no Campo (Partie de Campagne, 1936), A Grande Ilusão (La Grande Illusion, 1937) e, finalmente, o primus inter pares, o filme A Regra do Jogo (La Règle du Jeu, 1939), todos realizados, como seus títulos originais estão a indicar, na França.

Um Dia No Campo restou interminado. Contudo, não se ressente disso. Pelo contrário. Poderia mesmo ter sido planejado até onde foi, porque daí para frente - como demonstram as cenas finais, a título de epílogo de um dos encontros amorosos - corria o risco, como correram tais cenas, de descambar para o drama comum ou mesmo (quem sabe?) o dramalhão.

Aliás, esse desfecho até parece ter sido inserido por outrem para tentar dar acabamento à obra.

O fato é que esse pequeno filme alcança padrão que só encontra rival em sua filmografia nas duas outras obras citadas. E encontra, porque nelas Renoir atinge as culminâncias da arte.

Em Um Dia No Campo, excetuada a sequência final, tudo é adequado e poético.

A perspicácia autoral inicia-se pela biotipologia da família parisiense que protagoniza os acontecimentos, simples passeio dominical ao campo por meio de uma charrete, transformado numa das mais belas obras de arte já concebidas e realizadas, encravada no cerne da natureza humana poeticamente exposta.

Se essas personagens são esplendidamente plasmadas, não menor é o atilamento da escolha dos atores destinados a representá-las, corporificando-as e dando-lhes vida, movimento, gostos e aspirações.

Se isso não bastasse, a essa galeria acrescentam-se os moradores e hóspedes da estalagem campestre, desde os mais discretos aos dois dons juans.

A localização das filmagens, à beira de um rio que, àquela época, ainda conservava seus atributos naturais valorizados pela moldura de campos, bosques e matas, também constitui elemento básico da composição pictórica do filme, no qual, como se sabe, Jean reproduz alguns dos quadros pintados por seu pai Auguste.

Reunidos tais elementos, que só desenvolvida percepção do fenômeno humano e afiada sensibilidade poderiam proporcionar, Renoir infunde-lhes vida e beleza, emoção e atração, simpatia e amor, numa simbiose do ser humano com a natureza, em que tais fatores encontram livre expansão.

Cada gesto, tomada, palavra, diálogo, olhar e atitude das personagens, notadamente das protagonistas femininas (mãe e filha), deriva diretamente da conjunção das referidas percepção e sensibilidade para compor painel de vida formado por série de quadros consistentes das cenas cinematográficas que os animam, agitam e movimentam.

A troca de pares, o modo como se processa e, ainda, a movimentação que a determina vêm demonstrar, se tudo antes e o mais já não fossem suficientes para revelá-la e proclamá-la, a consciência de Renoir ao elaborar o filme e o domínio dos meios necessários e indispensáveis para concretizá-lo em cenas memoráveis de leveza e poeticidade.

Tudo num filme em que se concentra o aparato cultural milenar europeu, herdeiro das civilizações que o antecederam, burilaram e sedimentaram, com particular evocação do lirismo clássico grego, simultaneamente em igual dosagem, poética e realista, pela impregnação de forte conteúdo humanista, em que emoção e encantamento fundem-se numa só e mesma criação imagética para transmitir o fluxo da vida, de seres humanos vivendo e se relacionando amorosa e espontaneamente.

Um Dia No Campo é completo em sua incompletude, porque nele forma e desenvolve o ciclo vital da atração e satisfação emocional e física dos sexos com intensidade relacional e requinte poético, associando o ser humano e a natureza de modo preciso, e que, depois de feito (e necessariamente, como outras grandes obras de arte, teria de sê-lo), tornou-se indispensável à humanidade como criação de si mesma.

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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e regional.


sábado, 21 de julho de 2018

Obras-Primas do Cinema Europeu


L’AGE D’OR

Choque de Imagens

Guido Bilharinho

Obras-Primas do Cinema Europeu

         Luís Buñuel (1900-1983) inicia sua carreira cinematográfica realizando, de plano, dois filmes básicos do cinema, ambos de vanguarda, ambos surrealistas, além de excelentes.

         A Idade do Ouro (L’Age d’Or, França, 1930) revela diretor forrado de ampla cultura humanística e artística e com perfeito domínio da linguagem cinematográfica.

         Tais atributos, à evidência, não são congênitos, mas, adquiridos com estudo, esforço e observação. Música, artes plásticas e imagens ligam-se na composição de obra cinematográfica elaborada com rigor, liberdade, ousadia e criatividade.

         Ao espetáculo opõe-se a arte; ao convencional, o insólito; ao compreensível, a alusão; ao contextual, o fragmentário; ao previsível, a surpresa; à restrição, a liberdade; ao explícito, o subtendido.

         A beleza das imagens e a perfeição pictórica dos enquadramentos respaldam temática trabalhada ao nível do significante (forma) e não apenas do significado (conceito). Este restringe-se a sentido único, atribuído e  perfilhado pelo autor, enquanto aquele permite várias leituras e direções. Se este não passa de revólver de um tiro só, aquele é verdadeira metralhadora giratória, espalhando petardos para todos os lados, excetuado, compreensivelmente, o do atirador. Buñuel é alusivo e não explicativo, fazendo com que o choque das imagens - mais do que sua simples sucessão - ao invés de desencadear fatos e acontecimentos, revele o imponderável das coisas tornadas ininteligíveis à mera abordagem convencional.

         Se não há liame perceptível entre a circunstância de uma vaca estar sobre uma cama e a face da personagem enamorada apresentar-se coberta de sangue e nem ao menos dê-se explicação para tais ocorrências, a questão é que esses  e outros fatos dimensionam a liberdade, quebrando drasticamente os limites estabelecidos  pela realidade da matéria, compondo um mundo surreal, indefinível e incontrolável como os sonhos.

         Esse inconformismo explícito contra restrições, impossibilidades e incapacidade física do indivíduo para atender a anseios e volições corresponde à liberdade imaginativa, intelectual e artística.

         Se há balizas - e estritas - à atividade humana, sejam as físicas, sejam as convencionadas e impostas pela estrutura social, que impedem a aventura e a livre locomoção, resta, como viabilidade - raramente aproveitada e, quando o seja, apenas por poucos artistas - a deflagração do pensamento, da imaginação e da criação artística, irrestritos por natureza e só passíveis de estreiteza e amesquinhamento pela deficiência particular do indivíduo, não da espécie.

         Se o ser humano normalmente é coarctado em concepções e realizações, o artista não o é, já que se utiliza da liberdade, faculdades e possibilidades que também lhe concede a condição humana. Um deles é Buñuel. Um de seus exemplos, L’Age d’Or.

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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e regional.



domingo, 17 de junho de 2018

Obras-Primas do Cinema Europeu


METROPOLIS
Criatividade e Arrojo

Guido Bilharinho

Metropolis


         A ficção-científica nasce com Edgar Allan Poe, que, além de tudo, em 1844, quase um século antes de Orson Welles, agita Nova York com a falsa notícia, publicada no New York Sun em tons sensacionalistas, da travessia do Atlântico por máquina voadora dirigida, entre outros, por um certo Monck Mason. Aliás, Poe é, também, o criador da ficção policial. Na literatura, são gêneros menores ou, na concepção de muitos, nem o são. Apenas, simples entretenimento. Na verdade, com exceções tão raras quanto notórias, entre as quais os contos poescos, não passam disso.

         No cinema, contudo, tanto um como outro adquirem importância e status artístico, assumindo posição destacada.

         Metropolis (Idem, Alemanha, 1926), de Fritz Lang (Áustria, 1890-1976), é talvez, cronologicamente, o primeiro grande filme de ficção-científica. Não simplesmente o primeiro, porque, antes dele, e desde Méliès, com seu Voyage Dans la Lune (França, 1902), o gênero já se instala no cinema. Mas, o primeiro de valor artístico, de arrojada criatividade.

         É filme expressionista. Síntese entre o expressionismo, a inventividade artística e a ficção-científica.

         Impressionam, nele, a convergência e a convivência de concepções futuristas na arquitetura, no urbanismo e na parafernália e infraestrutura mecânicas, abrangendo desde TV, robótica (um perfeito e, segundo consta, primeiro robô do cinema), e complexa combinação de máquinas de toda espécie, função e finalidade com as mais antiquadas e superadas formas de habitação subterrânea, como as catacumbas.

         Lang coloca, pois, lado a lado, modernidade e arcaísmo: a) arranha-céus colossais e coruscantes, entre os quais se insere, insólita, a casa-cabana de cientista genial, porém, estereotipadamente aloucado, vezo expressionista ecoando a tendência preconceituosa do homem comum em relação aos sábios; b) portentosos viadutos e sombrios corredores catacúmbicos cavados na rocha; c) interiores futuristas e cavernas tumulares de ossuários à mostra. Estas, aliás, lembram e remetem àquela descrita por Edgar Allan Poe (EE. UU., 1809-1849), no conto “O Barril de Amontillado” (The Cask of Amontillad), da série Contos de Terror, de Mistério e de Morte. Conto este, aliás, que, fundido com “O Gato Preto”, e ambos alterados em muitos pontos, servem de base ao segundo episódio do filme Muralhas do Pavor (Tales of Terror, EE.UU., 1962), de Roger Corman.

         Antes do Chaplin de Tempos Modernos (Modern Times, EE.UU., 1936), Lang focaliza a robotização do operário pela imposição de movimentos uniformes e constantes.

         Raros são os filmes, proporcionalmente à evolução científica da época de sua feitura, com poder imaginativo tão desenvolvido e marcado por percepção e realização tão avançadas e ousadas como Metropolis. E, ao mesmo tempo, tão terrível em captar a realidade da exploração do trabalho humano e a volubilidade e desorientação das massas amesquinhadas e animalizadas.

         Nem só isso, nem só tudo isso, porém. Além das notórias distorções impostas pelo expressionismo, realçando o mistério, o inaudito e o indizível, o sentimento humano e humanitário permeia o filme do início ao fim. Afinal, suas personagens são seres humanos, malgré tout.

         Como construção cinematográfica e criação artística, Metropolis constitui uma das obras capitais não só da ficção-científica e do expressionismo, mas, do cinema, que nem o exagero e mesmo simploriedade da justaposição antinômica capital x trabalho conseguem empanar. Porém, são justamente excessos, desvirtuamentos e contrastes que Lang quer realçar, mesmo que, nesse passo, incida num maniqueísmo convencional.

         Sob o aspecto da interpretação dos atores, o filme, desde 1926, denuncia o que muitos, à época, inclusive e principalmente Chaplin, não queriam ver e aceitar: a limitação imposta pela falta do som, levando não só nesse, mas, principalmente nele, a demasias interpretativas para conseguirem os atores exprimir e enfatizar as emoções e sentimentos que avassalam as personagens. No caso, é enorme o esforço nesse sentido dos dois protagonistas, o casal de jovens inserido no vórtice dos acontecimentos e neles interferindo com sua ação idealista (e bastante idealizada).

         Por fim, em se tratando, como se trata, de filme expressionista, mesmo que de ficção-científica, é inadmissível (para se ficar num termo civilizado) sua colorização, conforme versão existente. A própria gênese do filme, como de qualquer obra do expressionismo cinematográfico, repele a claridade, a iluminação, o pluralismo cromático. Sob esse prisma, a cópia colorizada que a televisão por vezes exibe, e segundo se sabe, ainda por cima mutilada, é simplesmente anti-expressionista e ofensiva à autoria e à criação artística.

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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e regional.


terça-feira, 8 de maio de 2018

Obras-Primas do Cinema Europeu


NOSFERATU 

A Arquitetura do Terror 



Guido Bilharinho

A Arquitetura do Terror

Em 1922, na Alemanha, Friedrick Wilhelm Murnau (1889-1931) realiza Nosferatu (Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens), baseado no livro de Bram Stoker, conquanto sem dizê-lo e até mudando os nomes das personagens, o que lhe valeu, a ele e ao produtor do filme, processo judicial.

Não obstante ter-se posteriormente várias versões do tema, como as realizadas por Tod Browning (EE.UU., 1932), Werner Herzog (Alemanha, 1979) e Francis Ford Coppola (E.E. UU., 1992), é indispensável - e mesmo inevitável - compará-lo com a refilmagem de Herzog.

Não por ser alemã, mas, porque Herzog não efetua sua versão do assunto, mas, deliberada e meticulosamente, reconstrói o roteiro de Murnau com ênfase na figura de Drácula. Só que o faz modernamente, já com recursos técnicos superiores, além do som e da cor, inexistentes no início da década de 1920.

Esses fatores permitem-lhe poetizar as terríveis existência e práticas mortais de Drácula, realizando filme belíssimo e, como é seu propósito, paralelizando o original cinematográfico de Murnau. Conquanto tudo isso, não supera o paradigma e imprime ao tema orientação diversa e, em alguns casos, contraposta.

Com Murnau, a ação, os atos e fatos que a compõem são apresentados em cenas e sequências breves e cortes rápidos, essencializando-se a exposição temática. Em Herzog, com auxílio da dialogação, explicitam-se mais os significados do conteúdo das imagens e nelas mais se demora.

Nesse modus faciendi, evidente retrocesso. Se na década de 1920, não tendo o cinema nem trinta anos de existência, obtém-se acentuada contenção, que permite entendimento e acompanhamento do sentido imagético, o contrário, cinquenta anos depois, revela diminuição do rigor criativo do cineasta para atendimento do vicioso comodismo das plateias.

O filme de Herzog, sob esse prisma, é linear e, em alguns casos, comete excessos, como nas cenas da longa e morosa viagem do corretor de imóveis (o mocinho da trama), entre a aldeia onde se hospeda e o castelo de Drácula, nos Cárpatos, na mítica Transilvânia.

Em Murnau, não só isso (como tudo o mais) é feito com parcimônia e economia de meios, entre os quais sobreleva o tempo.

Se Herzog é poético e paisagístico, Murnau é plástico, escultural e arquitetônico. Se tudo naquele é banhado por suavidade pictural, neste sobressaem linhas e formas. A cena, esculpida ao vivo, de Drácula no tombadilho do funesto navio que o conduz a Bremen, tendo como ornamento o mastro e o cordalhame marítimo, é de expressiva beleza, tornando-se emblemática.

Talvez dada sua grandiosidade criativa, Herzog não a tenha desejado (ou podido) reproduzir. No navio de seu filme, Drácula não aparece, restando apenas presença referencial induzida, não obstante mortífera.

Em Murnau surge duas vezes, no porão e no tombadilho e, em ambas, de maneira impressionante e aterradora.

Além disso, da linearidade explicativa de um e do rigor e concisão de outro, ocorre outra importante divergência de concepção entre esses filmes.

Como se disse, Murnau, por uma série de razões e exigências técnicas e de produção, contém-se e substancializa-se. Contudo, essa característica é também conceitual e consciente. Seu Drácula não se expõe nem é exposto. Apenas existe, surge e age. Rápida e fulminantemente. Dele mais não se sabe nem se diz. É o perigo e a morte. Impessoais, objetivos, determinantes. Já Herzog humaniza a figura, que exterioriza sua sina eterna e a lamenta. Mas, nem por isso é menos letal.

Nítida, porém, é a semelhança física entre os dois atores, procurando e conseguindo Herzog reconstruir fisicamente a personagem de Murnau. Porém, esta é hierática, esguia, ágil. A de Herzog, dadas sua humanização e maior exposição, mais presente e lenta. Ambas, no entanto, eficazmente concebidas e concretizadas.

No mais, Herzog altera, em vários pontos, alguns fatos, como a volta do corretor inconsciente e dominado pelo contágio do vampiro, enquanto que em Murnau retorna sem esse estigma, reintegrando-se no convívio familiar. Notadamente, altera a perspectiva de Murnau, que encerra a tragédia com a possibilidade de sua continuidade, o que se interpreta como sinal do tempo.

Costuma-se afirmar que Murnau previu Hitler. Não é tão certa essa possibilidade, já que, se há previsão, seria de Bram Stoker e não dele. Ademais, e principalmente, nada induz a isso. O fenômeno vampiresco e a lenda do conde Drácula preexistem ao século XX.

É verdade que em Murnau sai-se desenhando cruzes nas portas das casas onde existem pessoas tomadas pela peste, o que reporta às suásticas apostas nas residências dos judeus pelos nazistas. Todavia, mera coincidência. Nada tem a ver uma coisa com outra. Na Noite de São Bartolomeu, também sinalizaram-se as residências dos huguenotes antes de sua matança, conforme o respectivo episódio em Intolerância (Intolerance, EE.UU., 1916), de D. W. Griffith.

A estória de Drácula, conquanto não esgote seu significado em si mesma, refere-se a temores, anseios e angústias humanas atávicas e milenares, não sendo, por isso, suscetível desse tipo de extrapolação. O fenômeno nazista é de outra ordem, não obstante também amoral e impiedoso.

Em suma, do ponto de vista de construção, inventividade e linguagem cinematográfica, o filme de Murnau é superior ao de Herzog. Sua depurada beleza emerge da própria imagem e sua montagem. No filme de Herzog exsurge do conteúdo da imagem.



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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e regional.