O Ritmo do Século
Se o cinema nas duas primeiras décadas do século
XX tateava à procura de uma linguagem própria com base na paulatina descoberta,
utilização e domínio dos recursos da câmera, das possibilidades da imagem em
movimento e dos primeiros (e fundamentais) passos para o conhecimento e conscientização
dos efeitos da montagem, os anos 20 desse século assistem a eclosão de uns e outros.
Nessa
década dão-se realizações artísticas experimentais e de vanguarda como nunca
antes e nem depois o cinema teria iguais, em qualidade e intensidade, bastando
lembrar, entre outras, as obras de Marcel L’Herbier, Fernand Léger, Walter Ruttmann,
Marcel Duchamp, Germaine Dulac, René Clair, Man Ray, Dimitri Kursanoff, Alberto
Cavalcanti, Buñuel, Viking Eggeling e Hans Richter.
Um
desses filmes é Berlim, Sinfonia da Metrópole (Berlin, die Symphonie der
Grosstadt, Alemanha, 1927), de Walter Ruttmann (1887-1941), que viera da
realização da série abstrata Opus (1922/1925).
Antes,
pois, do célebre filme Um Homem Com Uma Câmera (Cheloveks Kinoapparatom,
U.R.S.S., 1929), de Dziga Vertov, mas já influenciado pelas ideias desse realizador
soviético, Ruttmann dá à luz sua obra fundamental, que se torna também,
automaticamente, um dos filmes capitais do cinema.
O que
prenuncia o título materializa-se em imagem de grande esplendor, em construção
de extrema perspicácia cerebral, alta acuidade visual e apropriada montagem de
movimentos de tão vibrante constância e sucessividade que captam e fixam o
ritmo do século, que só o cinema possibilita em toda sua concreticidade e
grandeza.
O
filme visualiza o pulsar da atividade humana na era 01 (zero um) da máquina, já
que a era 0 (zero) deu-se no século XIX, numa demarragem que não tem nem terá
fim, prefigurando ininterruptas
continuidade, aperfeiçoamento e desenvolvimento, como o transicional século XX
demonstrou. Dificilmente será encontrável
obra que traduza e transfigure em arte o cerne de seu tempo em sequência
poética de figurações instantâneas do habitat construído até então pelo ser
humano e de sua ativa inserção nesse contexto.
A
velocidade dessa sucessão em cortes rápidos e montagem célere aliada à articulada
visão do artista resultam em primorosa súmula desse universo humano numa das
grandes metrópoles do planeta.
No
filme ressaltam-se em iguais importância e intensidade a realidade material
urbana e a ação e movimentação nela do
ser humano, sem esquecer os instantâneos, com toda sua construção imagética, de alguns
animais, inclusive em montagem contrastante com atos humanos.
No
primeiro caso, avultam as
imagens do outrora mais veloz meio de locomoção terrestre, o trem, em
perspectivas impressionantes, resultantes de enquadramentos de grande eficácia
estética. Daí em diante sucede-se a exposição da metrópole que desperta suas
forças vivas, abrangendo sem-número de situações e aspectos urbanos mostrados
em tomadas adequadamente anguladas, por força do inteligente e artístico
olhar do cineasta, construtor de uma poética não só da imagem, tão forte como a
da palavra, mas de verdadeira poética da matéria.
Só
olhar desse quilate teria condições de empalmar, utilizar e direcionar os
recursos da câmera e da montagem para configurar obra desse vigor e proporções,
em que cada instantâneo e sua reunião e montagem atingem força estética
proveniente de um poder e sofisticação raramente encontráveis.
Enfim,
em questão de imagem e montagem não há nada que já não esteja nesse filme ou
que nele não se embase e inspire, e que não é apenas efeito da vanguarda, mas,
a própria vanguarda. O filme não constitui, obviamente, ficção. Nem
documentário. É imagem em movimento. Cinema, enfim.
*
Além
e independentemente de seu valor artístico, revela uma cidade diferente do
estereótipo utilizado para explicar e justificar o progresso do país sob a
posterior administração nazista. Numa pujança como aquela não há nada
extraordinário nesse êxito, visto que representou o desenvolvimento natural que
empolgação do poder e inteligente manipulação cristalizaram. Milagre mesmo
seria esse grupo ter os resultados alcançados em países subdesenvolvidos. Na
Alemanha que o filme mostra não é vantagem. Malgrado a derrota na Primeira
Grande Guerra e o processo inflacionário dos anos de 1920, o país era, ao
findar a década, o mais desenvolvido do mundo.
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Guido Bilharinho é
advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão
de 1980 a 2000 e autor de
livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e
regional.
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