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sábado, 25 de março de 2023

ALERGIA

Uma das grandes injustiças cometida contra esse escriba por sua filha é o epíteto de pão duro que ela me agracia às vezes.

A expressão, reza a lenda, surgiu no Rio antigo, para alcunhar um pedinte que ao finalizar o seu lamurioso pedido ao incauto transeunte e depois de muita insistência, arrematava como argumento final: “- Senhor, pode ser qualquer coisa, até um Pão Duro”.

Descobriu-se depois que o pedinte era possuidor de inúmeros imóveis na cidade e que os alugava, auferindo assim uma renda substancial.

Esse enredo na realidade foi uma peça de Amaral Gurgel. Se baseada em fatos reais não saberemos nunca, mas ficou no imaginário popular como se verdade fosse.
Pois bem, depois desse intróito, passemos aos fatos:

Geralmente passávamos as férias de início de ano no Guarujá, onde havia uma abundância de apartamentos dos tios à disposição dos parentes interioranos.

Tínhamos o Ap. da Neide e do Tio Betinho, da Angela, do Tio Natal e, finalizando, o que mais ficávamos que era o Ap. do Tio Ariovaldo e tia Terezinha.

Gostávamos demais do Guarujá, pois praia “era a nossa praia” e combinado com o custo zero da estadia (não que isso importasse, é claro), formava-se o passeio perfeito.

Íamos e voltávamos de ônibus, pois a minha “Caravan 78” era uma beberrona de primeira, além de não ser nada confiável, depois de várias retíficas no motor e os pneus ressolados que vez ou outra insistiam em esvaziar do nada. Ah, o motorista, diga-se de passagem, era mais ou menos do nível da Caravan (que deus a tenha).

E como uma coisa puxa a outra, então tenho que relatar o amor que os meus filhos tinham pela Caravan:
Quando pré adolescentes, eles começaram a frequentar o Munchen, apelidado de “Bobódromo” e eu, ao leva-los e busca-los lá, deveria, segundo as regras deles, deixa-los um quarteirão antes, para que não fossem vistos descendo daquela beleza.

Nas duas primeiras vezes eu desliguei a Caravan para que eles descessem e quem disse que a beberrona pegava? Parece que ficava magoada e descontava pirraçando esse pobre choffeur!
Depois disso, por via das dúvidas, nunca mais desliguei a dita cuja.

Onde estávamos, mesmo? Na viagem de ônibus, que nos deixávamos na estação Tietê, pegávamos o metrô, descíamos no Jabaquara, outro ônibus para Santos, coletivo para a balsa, atravessávamos e por fim outro coletivo para a avenida Leomil, onde ficava o apartamento do Tchiarió (tio Ariovaldo).Na volta a mesma coisa.

Numa dessas férias, na volta, como estávamos um pouco atrasados, pegamos um taxi na balsa de Santos para nos levar até a rodoviária.

No caminho, a Marcella começou a ficar enjoada e trocando ideias com a Zânia, chegamos à conclusão que só poderia ser o camarão que ela havia comido antes, visto que eu tenho alergia muito acentuada por esse crustáceo.

Comentei com o motorista e ele com medo de que a criança vomitasse no carro dele, fez o trajeto de mais ou menos 30 minutos, em espantosos 15!!

Foi a sorte dele, pois assim que descemos do taxi, a Marcella vomitou com força.

A partir daí, demos por fato consumado que a Marcella teria a mesma alergia que eu e nunca mais ela comeu camarão, lagosta, ou qualquer fruto do mar.

Mas, como diz meu amigo Carijó - nunca é um tempo longo demais - deu-se que no seu primeiro casamento ela e o marido foram passar a lua de mel em Maceió.

O ex marido médico, era apaixonado por frutos do mar e no Resort que ficaram (all inclusive) servia-se camarões em todas a refeições. Meio que timidamente, resolveu ela que experimentaria um daqueles camarões gigantes que serviam a toda hora.

Afinal, sendo o marido médico, qualquer problema o socorro seria imediato.

Mas para surpresa geral (menos para mim, supõe ela até hoje) não houve reação alguma.

Neca de alergia, nada de beiço inchado, nada de espirros; nem mesmo uma mísera coceirinha no braço.
A partir daí, como diz o ditado “quem nunca comeu mel, quando come se lambuza”, foi uma farra só.
Omelete de camarão no café da manhã, camarão na moranga no almoço, Lagosta à Thermidor no jantar, ostras e espetinho de camarão na praia e por aí ia.

Chegando em Uberaba, fui recebê-los no aeroporto e ao abraçá-la, ela já me questionou naquele tom de voz vários decibéis acima do normal:

-Pai, cê me enganou esse tempo todo!!!! Não tenho alergia nenhuma por camarão. Cê não queria é comprar camarão porque é caro, aí inventou isso.

Não adiantou contra argumentar, até hoje ela jura de pé junto que assim foi.

Nem sabe ela - saberá agora - que aconteceu meio que parecido quando ela comeu filé mignon e também passou mal. Mas dessa vez não consegui convencer a Zânia que tinha sido a carne.


Marcelo Caparelli


História de Uberaba

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O homem bomba

As pescarias da turma do meu pai eram famosas entre a comunidade pesqueira de Uberaba.
Pelo menos duas vezes por ano a turma se reunia e iam pescar no rio Paranaíba, que era famoso por ser extremamente piscoso.

Naquela época, não havia conscientização alguma e todo peixe pescado era embarcado, independentemente de tamanho. Não existia cota pra trazer peixes, muito menos período de piracema, onde se proíbe a pesca.

Jaús de mais de 50kg era uma constante nessas pescarias, bem como dourados, pacus, piaparas e piracanjubas.

A única regra para os pescadores era de que os peixes só poderiam ser pegos usando varas de carretilhas ou molinetes.

Armadilhas não eram toleradas e redes eram usadas somente para pegar iscas, que seriam os lambaris.
Nessas pescarias que reuniam de 10 a 15 pescadores, era imperioso que houvesse alguma pegadinha com algum dos pescadores. Geralmente essa pegadinha recaia sobre o novato da turma como em todo lugar.

Nessa pescaria que eu passo a relatar agora, foram reunidos doze pescadores sendo oito assíduos da turma.

Também fez parte da comitiva, um cozinheiro, que também pescava, mas não pagava e um convidado que às vezes ia com a turma, pois a turma frequente dele era outra.

Esse um era o Tonico Correia, famoso por suas pegadinhas, acompanhado por um sobrinho que nunca havia participado da turma do Caparelli.

O transporte era feito em dois veículos, sendo que um caminhãozinho levava a tralha toda da pescaria na carroceria e na “boléia” iam um pescador dirigindo, tendo ao seu lado o cozinheiro.
O outro veículo era um caminhão de transporte de soldados utilizados na segunda guerra que era coberto por lona removível para ser retirada quando em dias quentes o ambiente ficasse abafado demais.
Os assentos eram dois bancos de madeira acolchoados e contínuos, afixados de um lado e de outro da carroceria.
Esse caminhão, que foi adquirido pela turma, só era utilizado para esse fim e quando a turma não o estivesse usando, ele era alugado para outras turmas, rendendo algum para o caixa da próxima pescaria.
Depois de todos aboletados na carroceria, uns 30 km de viagem, o papo entre eles ia animado até que o sobrinho do Tonico resolve participar da conversa e para indignação geral diz que não gostava de pescar de vara e molinete.

O Sr. Adib, muito do meticuloso e assumindo a posição de advogado da turma dá uma lição de moral no sobrinho:

- Aqui, não! Aqui ninguém pesca de rede. Só anzol. Se você não trouxe vara, o Tonico que te trouxe, te empresta uma das dele.

Meio que constrangido, o sobrinho retruca:

-Não, “seu Adib” eu não pesco com rede não, e para piorar a explicação, saiu-se com essa:

- Eu pesco é com bomba, é só soltar ela no rio e vocês vão ver o que é pegar peixes, enche uma caixa daquelas grandonas em dez minutos.

-Olha ela aqui, continuou ele.

Disse isso e abriu sua sacola, tirando de lá um artefato parecido com uma granada, só que maior, e com um pavio bem curto.

Dentro do caminhão o alarido foi grande. Todos execrando a atitude do moço e o Tonico que ia na boléia junto com o Adalgiso, que era o motorista, ficou indiferente ao movimento lá atrás.

Muito vermelho e sem graça, o sobrinho guardou a bomba, pediu desculpas e disse que nas outras turmas eles sempre levavam uma bomba, para garantir que trouxessem peixes se a pescaria não fosse proveitosa.

Parecia que ele estava prevendo: chegando já de tardinha no Paranaíba, acomodaram-se no rancho do Zé Faustino e o tempo que já estava nublado, fechou de vez. A chuva começou fraquinha e foi aumentando aos poucos até se tornar uma tempestade que durou até às duas da manhã, quando por fim cessou.

A conversa rolou sobre se o rio ficaria barrento, coisa que atrapalharia demais a captura de peixes e todos torcendo para a tempestade não ter caído nos afluentes que desaguam no Paranaíba, pois isso faz com que os pequenos ribeirões derramem muita água barrenta no rio principal.

Parece que as preces não foram atendidas, pois pela manhã, encontraram um rio muito sujo, tanto na margem mineira, quanto na margem goiana.

A pescaria estava programada para 5 dias e nos quatro primeiros dias, a contabilidade dos peixes ia bem abaixo do esperado e pelo pique da remada, a divisão dos peixes não contemplaria nem 1 kg para cada pescador.

Na reunião da tarde, quando todos estavam reunidos na mesa grande esperando o jantar, o sobrinho volta ao assunto e comenta com meu pai:

- Caparelli, naquele remanso ali em baixo onde estou pescando com meu tio, é só soltar a bomba que dá pra encher as duas caixas térmicas.

Quem estava mais perto era o Otacílio Martins que escutando a conversa repreendeu novamente o soltador de bomba.

- Aqui não! E em alto e bom som completou: se não pegarmos mais nada manhã, dividiremos o que foi pescado.

Meu pai então fez o advogado do diabo e passou a defender o sobrinho.

- Deixa ele, Otacílio, se ele pesca assim, é problema dele, não nosso.

- Deixa nada, interrompeu o “Prego” (Jair Padeiro), ele é um moleque, isso que ele é, nem devia ter vindo.

-Também não precisa ofender, né, Prego? O rapaz é novo, deixa ele.

E o Tonico, só de cabeça baixa, carregando a culpa de ter levado o sobrinho inconveniente.

O clima ficou pesado e poucos ficaram para a roda de conversa noturna, sendo que os poucos que ficaram, prosearam por poucos minutos e também foram dormir.

O ultimo dia foi ainda pior. Apesar do sol ter dado o ar da graça há dois dias, o rio continuava bem barrento e só uma dupla voltou com um dourado de uns 9 kg que foi consumido assado sem tempero, enrolado na folha de bananeira e servido com molho à parte no jantar.

De manhã, depois de acomodadas as tralhas, repetiram as disposições nos caminhões e levantaram acampamento.
Como fazia muito calor, a lona da carroceria foi retirada e a viagem de volta se iniciou e o sobrinho que estava sentado na ponta do banco, falou pro meu pai que estava sentado no mesmo banco, mas lá no fundo (nessas alturas, só meu pai dava bola pra ele):

- Caparelli, eu não posso voltar com essa bomba prá casa, é perigoso guardar isso; já que não soltei no rio tenho que explodir ela em um pasto qualquer aí; pede pro Adalgiso parar em um descampado pra eu soltar ela.

Meu pai avisou o Adalgiso que querendo ficar livre daquilo rápido, parou o caminhão.

- Solta aí, disse ele.

- Não dá Adalgiso, disse meu pai, tá muito perto do rancho e o Zé Faustino pode achar ruim.
Seguiram em frente, e alguns quilômetros depois, o Adalgiso para novamente o caminhão.

- Também não dá, disse o sobrinho, muito perto de arbustos, pode pegar fogo.

Aquilo se repetiu mais umas quatro vezes e os companheiros todos de cara amarrada, quando ele finalmente mandou parar caminhão.

- É aqui. Disse ele e tirando a bomba da sacola.
– Caparelli, me passa o fósforo.

Meu pai lá do fundo, tira a caixa de fósforos do bolso da camisa e joga pra ele.

Pessoal apreensivo com o desenrolar do ato, não tira os olhos da mão do homem bomba.

Ele, nervoso e tremendo muito, risca uns quatro palitos antes de conseguir acender o pavio, que como eu disse lá no começo, era bem curto.

Finalmente o pavio acendeu e ele querendo se ver livre da bomba rapidamente e todo atrapalhado, ao invés de atirar a bomba no mato e devolver a caixa de fósforo para meu pai, fez exatamente o contrário:

Com toda a força do braço atirou a caixa de fósforos no mato e displicentemente, rolou a bomba no chão da carroceria para no rumo do meu pai e gritou:

- Toma o fósforo Caparelli!

Nem é preciso dizer que não sobrou um pescador na carroceria.

Todos se atropelaram pulando o gradil que servia de encosto e em um átimo de segundo eles já estavam a uns 100m de distância, deitados no mato e esperando a explosão.

Minto; ficaram no caminhão os que sabiam da pegadinha, ou seja, meu pai, o sobrinho e o Tonico Correia na boléia que rindo muito escutaram a bomba fazer um silvo comprido tipo shshshshshshshsshshshshshiuuuuuuu e apagar.

Meu pai nunca me contou como eles saíram vivos depois dessa, o certo é que o sobrinho nunca mais pescou com a turma. Porem ele nem era pescador. Foi arrumado pelo Tonico, que armou essa com o meu pai, só para esse fim.

Marcelo Caparelli


segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Alma lavada!!!!

Encerramento da lotérica, às 17:00, só mulheres no atendimento, a funcionária fecha a porta e dez minutos depois, estando a porta só encostada, um mal-educado acompanhado de sua mulher, abre a porta e entra.

A funcionária comunica que ele não vai ser atendido pois entrou depois do encerramento e as máquinas já estavam desligadas.

Pronto! o deselegante armou um barraco daqueles. Vendo só mulheres no recinto, se encheu de coragem e passou a dirigir às meninas todo tipo de xingamentos, ameaças, impropérios e o escambau. Por mais que as meninas argumentassem que horário era pra ser cumprido, que se ficassem atendendo todos que chegassem depois do horário, não sairiam antes das 18:00 etc.., mais ele mais destilava ódio, batendo nos vidros dos caixas, que por precaução são blindados.

Mas Deus é justo: no exato momento que a gerente pegou o telefone para chamar o 190, passa, como que por encanto, uma viatura da PM!!! que, alertado pela vendedora de Triângulo da Sorte, parou para contornar a situação.

Desceram os quatro policiais que estavam na viatura e entraram para acalmar o gajo.
A expectativa era de que o homem se acalmasse e a normalidade fosse reestabelecida.
Ledo engano...

O distinto não se deu por achado e continuou vomitando impropérios, agora até contra os policiais que, perplexos, informaram que a atitude dele poderia ter sérias consequências.
Porém, de nada adiantou as argumentações do bloco dos “unidos do cassetete” que agiram segundo o manual.

Fim da história: o distinto foi devidamente algemado e preso e levado para a delegacia para se acalmar.
No outro dia a mulher do sujeito apareceu na lotérica de manhã para avisar que nós tomássemos cuidado, pois o marido dela fico no “corró” até às 6 da manhã por nossa culpa.
Por graça divina, nunca mais vimos o casal.


Marcelo Caparelli

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O defunto

Já notaram que meu personagem favorito é o meu pai. Isso se deve ao fato da admiração que eu sempre tive por ele, além do que ele foi uma das pessoas mais espirituosas que eu conheci e contava casos como ele só.

Quando crianças, depois do almoço eu, os irmãos e os primos, se estivessem em casa, deitávamos todos na cama e ele contava as histórias da “mão cabeluda”, personagem inventada por ele que poderia a qualquer momento sair de baixo da cama pra nos pegar.

Não raro, ele pegava no sono contando o episódio e como nós ficávamos com medo de descer da cama por causa da mão cabeluda, dormíamos a siesta também, dando assim um alívio para minha mãe fazer as tarefas do dia-a-dia.

Esse fato que passo a relatar, aconteceu em uma quarta-feira de um mês de maio num dia frio e sem sol, com uma garoa caindo intermitentemente.

Na época meu pai tinha uma pequena ilha na região de delta, onde todo fim de semana, se em Uberaba estivesse, juntava a tralha, e junto com minha mãe e o amigo inseparável Adib Sarkis, partiam na sexta-feira à tarde ou sábado de manhã, rumo à “Ilha do Kappa” para a pescaria de Piaus, Taguaras e afins na bem cuidada Brasília que dormia na frente da minha casa, amarrada pelo para-choques com uma corrente, que por sua vez era chumbada ao meio fio em frente a nossa casa, pois nessa época não existia garagem lá.

Pois nessa quarta-feira já citada, de manhã, meu pai estava na Lotérica trabalhando e sem motivo algum, decidiu ir até a ilha. Me pediu para tomar conta da loja e saiu sozinho sem pegar a tralha, sem chamar ninguém e nem a roupa trocou.

Chegando lá, meu pai desceu o barranco para pegar a canoa, que ficava também trancado por corrente, em uma figueira em frente à ilha.

Como não havia levado nem remo, fez uso de um pequeno remo reserva, que deixamos escondido para a eventualidade de um possível esquecimento.

Mas ao invés de atravessar os 10 metros que separam a ilha do barranco, meu pai, sem motivo algum, embicou a canoa para cima, em direção a uma pequena baía que se formava logo acima da ilha e era coberta quase que completamente por vegetação e onde nós costumávamos pegar iscas para pescar os Dourados.

Entrando na Baía ele avistou o motivo desse relato.

Boiando de bruços e inchado já, ele se deparou com um homem morto, meio que encoberto pela vegetação. Diz ele que nem surpreso ficou pois parecia que ele já sabia o que iria fazer ali e com o pedaço de corda que deixávamos no bico da canoa, amarrou o defunto pelo punho em um galho mais robusto da vegetação e voltou para o pequeno porto onde ficava a canoa.

Tudo isso foi feito maquinalmente, como se fosse uma missão, dizia ele.

Voltando para Uberaba, no caminho ele veio pensando: e agora? o que eu faço para não me envolver nisso? Se eu for na polícia, vou ficar lá o resto do dia e vão me chamar um monte de vezes até a conclusão do inquérito.

Chegando aqui ligou para o meu tio Natal (Benito Caparelli) que sendo advogado, estaria mais apto para dar uma solução para o acontecido.

Meu tio então falou para ele ligar na polícia e quando perguntassem o nome dele, desse um nome qualquer e nem mais uma informação que pudesse identificá-lo.

Meu pai ligou então para a polícia e informou o ocorrido, bem como a localização exata do corpo e quando perguntaram quem estava falando, meu pai que já tinha escrito o nome fictício no papel para não gaguejar, respondeu: aqui é o Geraldo Ferreira Rodrigues, eu sou pescador. E sem esticar a conversa, desligou o telefone apressadamente.

No outro dia, sai a manchete em letras garrafais no Lavoura e Comércio:

CORPO ENCONTRADO NO RIO GRANDE e no corpo da matéria o seguinte texto: “foi encontrado por um pescador no rio grande, próximo à margem, o corpo do senhor Geraldo Ferreira Rodrigues que por não ter contusões aparentes de perfurações e nem contusões, parece tratar-se de um caso de suicídio. As diligencias estão sendo feitas para a apuração do caso”.

Meu pai ao ler a notícia, comentou com o meu tio:

- Ô Benito, confundiram tudo. Esse nome aí foi o que eu dei para a polícia como se fosse o meu; ligo de novo lá?

- Liga nada, deixa quieto que depois eles resolvem isso.

Como o fato não teve repercussão e o jornal não trouxe mais nada a respeito, o caso foi esquecido e meu pai contava o fato aos amigos achando muito estranho as circunstancias do achado.

Mal pôde ele acreditar quando exato um ano depois, entra na loteria um pescador amigo dele, que às vezes participava como cozinheiro de pescarias no Paranaíba e entabularam o seguinte diálogo:

- Bom dia Caparelli, como vai?

- Ô Zé Rodrigues, está sumido, rapaz, tem pescado?

- Nada, tô com obras andando e tô muito sem tempo e agora tô sozinho.

O dito era carpinteiro de profissão e trabalhava de meia com o irmão.

- Uai, seu irmão não tá de sócio com você mais não?

O desfecho:

- Tá nada, ele morreu tem um ano; suicidou pulando da ponte de Delta.

Aí meu pai ligou o sobrenome do amigo com o nome que ele deu à polícia.

- Como chamava seu irmão, Zé?

-Geraldo, respondeu ele.

-Geraldo de que? Perguntou meu pai já todo arrepiado.

- Geraldo Ferreira Rodrigues.

Era o nome do defunto que por estranha coincidência meu pai havia escrito no papel para informar à polícia.


Marcelo Caparelli


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O cheque do Madruga

O apelido foi trocado por razões óbvias e o nome real do personagem era um nome bíblico que remete às sábias decisões e honestidade, porem o Madruga não era nada disso, pelo contrário, era useiro e vezeiro em dar calotes nos incautos.

Já de meia idade, no alto dos seus 1,80m, sempre de barba feita e cabelos engomados com brilhantina, usava sempre sapatos e calças brancas e no lugar do cinto, um vistoso suspensório.
Para recordar uma definição antiga - um perfeito finório.

Contava meu pai (sempre ele), em tom de galhofa e para ilustrar a figura, que certa vez morreu uma amiga em comum dos dois e a senhora, como era seu desejo, foi enterrada com seu impecável casaquinho preto que ela fazia questão de ostentar nas ocasiões em que se exigia um traje mais requintado.

Acontece que uns anos depois, aventou-se a hipótese da mesma ter sido envenenada e por conseguinte, tiveram que exumar a falecida.

Ao fazê-lo, qual não foi a surpresa dos presentes quando depararam com moradora da “cidade dos pés juntos” praticamente igual ao dia do enterro, isto é: sem deterioração alguma.

Depois de algumas hipóteses levantadas, descobriu-se, em um dos bolsos do casaquinho, um cheque do Madruga que ajudou a elucidar o mistério: o cheque era tão frio que congelou a defunta!

Pois, acreditem vocês que mesmo com esse histórico pouco abonador do caloteiro, meu pai caiu na lábia dele e num dia de bilhetes encalhados, ofereceu uma quina (cinco bilhetes com o mesmo número) e o Madruga disse que pagava na lista, ou então daria um cheque para descontar com um prazo de cinco dias.

Como já estava quase na hora de correr a loteria, meu pai achou por bem vender os bilhetes mediante o pagamento com o cheque pré-datado.

Antes tivesse corrido com o bilhete, pois o mesmo deu o final e salvou o mesmo dinheiro.
Na segunda feira à tarde meu pai pegou o cheque e foi até o bar do Madruga, que ficava no começo da Quintiliano Jardim, para devolver o cheque e pegar os bilhetes.

O Madruga, espertamente, disse ao meu pai que ele já havia trocado os bilhetes com um cambista que conferiu pra ele e que ficasse tranquilo pois o cheque seria compensado normalmente.

É claro que vocês já perceberam que meu pai entrara numa senhora “gelada” e naturalmente, depois de receber em dinheiro o prêmio na loteria do Abel Toledo, o cheque do Madruga voltou mais frio que abraço de sogra.

Bem que meu pai tentou receber o “borrachudo”, mas o Madruga fazia-se de rogado. Dizia que devolveram um cheque na conta dele e ele estava cobrando o devedor, mas assim que ele recebesse, meu pai podia ficar tranquilo pois ele pagaria tudo com juros e correção.

Pois sim! A compra foi em novembro e já estávamos em fevereiro e nada do Madruga “explicar” o pagamento.

Eu contava na época com 16 ou 17 anos e o carnaval já estava batendo na porta e eu como sempre estava “mais duro que beira de sino”, então propus ao meu pai receber o cheque, mediante uma módica taxa de 50%.

Já considerando a minha empreita como fadada ao insucesso, meu pai me entregou o cheque e disse que se eu recebesse, que ficasse com tudo.

Não me lembro agora de quanto seria a dívida, mas atualizando aos dias de hoje, o montante girava em mais ou menos R$500,00 que cobriria com folga as despesas com o carnaval e ainda sobraria para comprar uns dois ou três LPs na “A Musical” do meu amigo Bilo Miranzi.

Pensei um pouco e bolei o plano: reunir os amigos de farra, que eram muitos, fazer um esquenta no bar do Madruga, dividir a conta com os amigos, receber o dinheiro e chuchar o cheque sem fundos no pagamento da despesa da mesa.

Custei a convencer a turma que sempre se reunia no Fon-Fon a mudar de lugar o esquenta só naquela sexta-feira, e para ele não desconfiar de nada deixei para chegar mais tarde um pouco.
Lá pelas oito da noite o Marquinhos encabeçou a mesa tendo por companhia o Gontijo e o Caim.
Aos poucos foi chegando o resto da turma e quando dei as caras às oito e meia, as três mesas emendadas já contavam com uns dez ou onze amigos.

Eu assentei, tentando ficar de costas para o Madruga que estava no caixa e pedi o Campari de sempre que, competindo com o “rabo de galo”, duas bebidas da época, ganhava minha preferência por uma pequena margem.
Na sexta feira que antecedia a festa de momo, havia um banho à fantasia na Associação Esportiva e Cultural sendo que baile mesmo na cidade, só no Elite e no Lange (ah que saudades).

Lá pelas 22:30 da noite, conforme o plano, recolhi o dinheiro da turma e dei o cheque para o Marquinhos pagar a conta e receber o troco que era irrisório, pois a despesa quase alcançou o valor do cheque.

Marquei de encontrar o Marquinhos e quem fosse no banho à fantasia na Associação e saí na frente com o Ernesto e com o bolso estufado com o dinheiro recolhido.

Meia hora depois chega o Marquinho e mais uns três e eu pedi o resumo da ópera para ele:
- Deu certo Marquinhos?

-Deu sim, disse ele, - mas parece que ele não achou muito bom, não; - quando eu passei o cheque para ele, ele sem nem olhar o cheque, já espalhou comigo:

- Você sabe que eu não pego cheque.
- Mas o cheque é seu, Madruga!

Disse o Marquinhos que ele ficou vermelho, deu uma arrumada no suspensório, passando o polegar de baixo a cima nas alças do mesmo e exclamou uns dez tons acima do normal:
- Por isso mesmo!!!

- E o troco Madruga? perguntou o Marquinhos em tom de gozação, atirando o cheque em cima do balcão e já adivinhando a resposta dele, que foi exatamente a que vocês estão imaginando.

Eu só sei que aquele foi um dos melhores carnavais que brinquei, com dinheiro no bolso e rindo do Madruga, em cujo bar, nunca mais voltamos.

Deu-se ainda que por conta de alguns aluguéis atrasados o bar logo seria fechado para dar lugar ao bar K-Nequinho do Luiz e como o Luiz não desfilava no mesmo bloco do Madruga, ali permaneceu por muitos anos.

Marcelo Caparelli

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A herança

Entre tios e tias e os “tios” e “tias” por afinidade, visto que eram cônjuges dos tios legítimos, tive uns 30, dos quais infelizmente, só me restam cinco, sendo que raramente os vejo.

Dentre todos, o mais divertido, sem sombra de dúvidas, foi o Tio Orestes, natural de Araxá e dentista de profissão casado com a Tia Nair, irmã de papai.

Cabe aqui uma curiosidade sobre os nomes da família:
A nona era uma italiana que além de muito bonita era autoritária ao extremo e escolhia os nomes dos filhos; porem o Nono nem sempre concordava com as escolhas dela e como era ele quem registrava os rebentos, ao fazê-lo, fazia algumas pequenas alterações, senão vejamos:

O tio Benito Caparelli, foi assim batizado em homenagem ao “Duce” (Benito Mussolini) sendo que o tio, por ironia do destino, veio a se tornar um comunista ferrenho na juventude, tendo sido eleito como o vereador mais votado em Uberaba no pleito de 64, onde findou o mandato cassado e preso pela ditadura. Tempos depois, nas palavras dele mesmo, tornou-se um capitalista selvagem, porém sem nunca renegar suas origens políticas.

Mas, pasmem vocês, eu só soube que ele se chamava Benito justamente quando ele se candidatou, pois todos o conheciam como Natal e alguns mais íntimos o chamavam às vezes de “Natal Galinha”, não sei por que. Acontece que a Nona bateu pé e queria porque queria que ele se chamasse Natale e o Nono, para não a contrariar, visto que a ideia não era lá muito saudável para a relação, o registrou como Benito e só contou a ela muito mais tarde quando foram batizá-lo.
A tia Nair, pela mesma forma foi registrada como “Iolanda” nome que ao que parece não era muito do seu agrado, tanto que nem ela o usava.
A tia Alzira teve só uma leve alteraçãozinha e foi registrada como Elzira.
Depois do longo rodeio, voltemos ao tio Orestes, que eu chamava carinhosamente de TIÓ.
O Tió não era nada bonito, pelo contrário, era um “sem beleza” (me perdoe os primos e prima), mas que na juventude, antes de namorar a tia Nair, fazia sucesso com as mulheres em Araxá, não pela beleza, mas sim pela sua simpatia, pela sua eloquência, pela sua graça e espirituosidade.

Um dos seus bordões era chamar a tia Nair como “Naíro”, visto que uma das qualidades que a tia herdou da Nona, além da beleza foi a autoridade e o tio piava fino com ela.

O tio migrou de Pratinha, onde tinha seu consultório, para Brasília com a família alguns anos antes da inauguração, meio que fugido da cidade por conta de um mal-entendido com uma certa senhora casada da comunidade pratinhense.

Deu-se que ele já com planos de se mudar para a futura capital, ao cumprimentar a senhora em questão, depois do bom-dia de praxe, emendou, inocentemente, o malfadado comentário – Vambora pra Brasília, Socorro? – Era o nome dela, Maria do Socorro.

Ela ruborizou instantaneamente e nem resposta deu ao tio, indo direto contar o sucedido ao marido, que saiu tiririca da vida ao encontro do dentista assediador para esclarecer os fatos.

Depois de muitas desculpas e explicações por parte do tio, o marido deu-se por satisfeito e retirou-se para seu sítio.

Porem a mulher dele já havia contado a “cantada”, tim-tim por tim-tim para as fofoqueiras de plantão, de formas que nesse pequeno intervalo de tempo decorrido, praticamente toda a cidade já sabia do entrevero e “de mais a mais” (expressão do meu amigo Tharsis) a ofendida não aceitou muito bem a resolução do caso, exigindo uma atitude mais enérgica do marido.

O tio então, vendo que a situação se tornava periclitante, resolveu antecipar sua mudança para a nova capital.

Ele conta que nem esperou o dia amanhecer; juntou as trouxas, tomou um carro de praça com a família e rumou para Araxá e de lá para Uberaba onde depois de alguns dias hospedado na casa da Nona e preparando a coisas para a viagem, migrou finalmente para Brasília, onde fez a vida.

A família Vieira Borges a qual o tio pertencia, se não era abastada, pelo menos tinha algumas propriedades na cidade de Araxá, formando um patrimônio respeitável.

Vários inventários depois, já na década de oitenta deu-se que um irmão do tio veio a falecer sem deixar herdeiros e a casa que ele morava, seu único patrimônio, seria dividida pelos irmãos restantes que eram três (o tio e mais dois).

Era período da Exposição de gado em Uberaba e foi marcada uma reunião de família em Araxá para acertar a divisão da herança, onde provavelmente os irmãos comprariam a parte do tio, pois os dois se deram bem na vida e eram fazendeiros bem sucedidos na região.

Passando por Uberaba o Tio fez pouso na minha casa e de manhã meu pai se prontificou a leva-lo até a rodoviária para pegar o ônibus para Araxá. Para nosso estranhamento, o tio apareceu com uns trajes bem gastos, quase trajes de mendigo e questionado pelo meu pai, ele explicou o plano:
-Tenho que parecer bem pobre, pois já falei pra eles que estou passando muitas dificuldades financeiras, assim eles abrem mão da parte deles da casa.

Meu pai achou o plano meio que simplório, mas com o Tio Orestes tudo era possível.
Tanto era possível que deu certo.

No outro dia o tio chegou todo sorridente, contando que eles concordaram em vender a casa e repassar o dinheiro para ele e ainda, condoídos com a penúria do Tió, perguntaram se ele não precisava de mais algum para se equilibrar, porem ele com crise de consciência, recusou.

Aproveitando que estava em época de exposição, o tio convidou meu pai para irem comemorar no recém inaugurado “Chopim”, hoje Cupim Grill, com toda a despesa por conta dele.

Imediatamente meu pai ligou para o Érico, dono do restaurante e cliente da loteria, para que ele reservasse uma boa mesa de pista, isto é: de frente para o movimento da rua interna do recinto da Exposição e de onde se apreciava o movimento de vai e vem do “gado vacum”.

O tio para comemorar, foi de tarde no “Caldas Magazine”, comprou uma calça linho 120, camisa e meias de seda e um belo sapato “cromo alemão” comprado na “Samello”.

Não fosse pela sua feiura de nascença, o tio estaria fazendo inveja ao Sean Connery em elegância.
Lá pelas oito da noite, chegaram no Chopin e se aboletaram na mesa, pedindo os Chopps e tira gostos.
Assim estavam os dois colocando os assuntos em dia e tomando os Chopps, quando meu pai vira para ver uma bela vaca de exposição que passava em frente e ao retornar a cabeça para o interior do bar, não vê o Tio.

Olha em todas as direções e não o encontra, pensando aonde o tio teria ido sem comunicar nada. Matutando o que teria acontecido, meu pai percebe algo puxando a barra da sua calça por baixo da mesa.

Ora, e não é que era o tio que havia se metido lá em baixo?

Colocando a cabeça um pouquinho pra fora do pano de mesa e pondo o dedo indicador sobre os lábios, o tio fez “pshiiiiiu” para meu pai pedindo pra ele ficar quietinho.

Sussurrando bem baixinho ele só conseguiu falar pro meu pai:
- Meus irmãos...... tão entrando.

Meu pai quase sem conter o riso e disfarçando também, pergunta; e agora, Orestes?
- Quando eles entrarem você me fala. Sussurra o tio.

Por sorte, as mesas da frente estavam todas ocupadas e os irmão foram lá para o fundo´
Assim que eles tomaram assento, meu pai comunicou ao tio que a barra estava limpa e ele de fininho, morrendo de medo de ser visto, saiu de baixo da mesa e rumou de gatão em direção à saída.
O Luiz garçom, de saudosa memória, vendo a situação perguntou ao meu pai:
- Uai, Caparelli, que houve com seu amigo?

Meu pai, espirituoso como sempre responde:
- Problema de coluna. - Passa a régua e traz a conta.

Marcelo Caparelli
 
 

sábado, 5 de dezembro de 2020

Aumento de salário

Eu comecei a trabalhar na loteria bem novinho (já com nove anos atendia o balcão, vendendo bilhetes) e também comecei a ler cedo, muito cedo.

Devorava os gibis da época, adorava tio Patinhas, Mickey, Donald e em consequência desse vício, o meu “salário” era investido quase todo na Banca do Vilmondes, pai da dona Sônia.

O restinho que sobrava ficava no bar do Lara, que fazia uma coxinha com 90% de batata e 10% de recheio, mas que eu adorava.

A transição para uma leitura, digamos, mais culta, se deu quando descobri os livrinhos de faroeste. Foi paixão à primeira vista.

Mas aí deu-se o problema; para comprar aqueles hebdomadários, que como todos sabem é uma publicação com frequência semanal, teria que abdicar de algum gibi ou, extremo suplício, retirar a coxinha do cardápio.

Como nenhuma dessas duas hipóteses me agradaram, cogitei de pedir algum socorro pecuniário.
Primeiro pedi para Nona, depois para minha mãe, mas as duas não vendo utilidade alguma naquelas aquisições semanais, negaram terminantemente as minhas súplicas.

Porém, a Nona com sua sabedoria infinita, me aconselhou a pedir um aumento de salário ao meu pai e me instruiu para que, caso ele perguntasse o motivo, dissesse que eu estava trabalhando muito, pois como estivesse em recesso escolar, estava trabalhando de manhã e de tarde.

Acho que ela já sabia como seria a conversa, pois deu uma risadinha sacana e me despachou para a sala, onde meu pai assistia TV.

Foi aí que a porca torceu o rabo! O diálogo com meu pai deu-se mais ou menos assim:
- Pai, tô preciso de um aumento no meu salário, e atropelando o conselho da Nona, já adiantei o argumento: - acho que eu tô trabalhando muito.

-Hummmm, disse ele, criando um leve suspense.

- Vamos ver, então. Pega o lápis e caderno, vamos lá prá mesa calcular seu aumento.

-Opa, agora me dei bem; pensei tão alto que até fiquei com medo dele escutar.

Feito os preparativos, meu pai começou os cálculos.

-Quantas horas você está trabalhando por dia?

- Oito, respondi.

-Então, sabendo que o dia tem 24 horas e você trabalha 1/3 do dia, podemos afirmar que você trabalha 1/3 do ano, que arredondando dá 122 dias trabalhados, certo?

Tá certo, assenti, já começando a desconfiar daquela conta.

E ele continuou:
- Dos 122 dias trabalhados, temos que descontar os domingos e metade dos sábados, em que você não trabalha, certo?

Então descontando 52 domingos sobram 70 dias que você trabalha e descontando mais 26 dias correspondentes aos sábados, sobram agora 44 dias, certo?

Realmente eu não trabalhava nem aos sábados à tarde e muito menos aos domingos, então, relutantemente, concordei, com a pulga atrás da orelha já me incomodando.

Antes que eu raciocinasse melhor ele continuou:
- Agora temos que descontar 30 dias de férias que você passa em Brasília com seus primos, daí sobram 14 dias, certo?

Confesso que aqueles “certo” no final dos cálculos já estavam me dando nos nervos, mas ele implacável continuou:
- Temos agora que descontar os dias santos e os feriados nacionais que somam 13!

Aí não aguentei:
– ô pai, quer dizer que eu só trabalho um dia no ano todo?

O Arremate foi o melhor:
- Não senhor, respondeu; amanhã é o dia do trabalho e ninguém trabalha esse dia!

A nona ria muito da minha cara de aflição por não ter conseguido o aumento, mas deu a solução para a aquisição dos sonhados livrinhos de faroeste.

-Vai lá no Idílio Cardosi, que ele tem alguns e te empresta.

Saí correndo na sete de setembro e passando no bar do seu João na esquina da Padre Zeferino vi o Idílio lá dentro e perguntei se era verdade a informação da nona.

Ele confirmou a veracidade do fato e disse para escolher qualquer um na casa dele, que ficava a uns 20 metros descendo a rua.

Chegando lá a dona Magda, sua esposa, me atendeu e mandou que eu entrasse para escolher alguns.
Quando entrei no quartinho onde ele guardava os ditos cujos, quase caí das pernas.

Havia lá, calculando modestamente, mais de 2000 livrinhos daqueles e tanto meu amigo Astolfo, sobrinho do Idílio quanto o Justino, seu filho, são testemunhas vivas desse fato.

Foi assim que fiz a transição do gibi para leitura de livrinhos de faroeste, que me levariam a outras leituras, mas isso já é outra história.

Marcelo Caparelli

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

MÁ ESCOLHA

Conversando domingo no zap com uma amiga, surgiu uma conversa sobre a escolha do nome do filho de outra amiga dela. A amiga estava indecisa entre Salomão e Joaquim.

Quando ela me perguntou o que eu achava, optei por Salomão e imediatamente me veio a lembrança de um fato acontecido com um “cambista” cego que se chamava Salomão.

Cambista é um vendedor ambulante de loterias e naquela época - década de 80 – sem a inclusão que existe hoje, as oportunidades para um cego trabalhar eram pouquíssimas e uma dessas atividades consistia justamente em ser vendedor ambulante de bilhetes ou “cambista”, como são chamados.

Grande parte dos cegos adultos internados no Instituto dos cegos de Uberaba trabalhavam como cambistas na nossa loteria, comprando os bilhetes com algum deságio e revendendo-os por um preço acima do estampado na face dos mesmos, auferindo assim um bom rendimento semanal.

Me recordo ainda de alguns deles, tais como o Inocêncio, jogador de truco, (isso mesmo; jogava com amigos no Bar do Lara com baralho em Braile) que vendeu o bilhete Nº 00389 premiado com o primeiro prêmio em um sorteio de fim de ano.

O Antônio Marcos que volta e meia era atropelado, o Darcy e o Zé Augusto que vendiam seus bilhetes nas cidades vizinhas do estado de São Paulo, e o Pula-pula, que não é cego, porem deficiente e que até hoje vende seus bilhetes na porta do Banco do Brasil.

Além desses, tinha um cambista do Abelzinho Toledo, cego também e que foi namorado de uma amiga da minha esposa. Consta que esse tal era muito paquerador e mesmo namorando, se engraçava com outras mulheres; porem dadas as dificuldades de esconder as escapadas em virtude de não saber se a namorada ou alguma amiga dela estivesse no barzinho do encontro com a “filial”, foi flagrado pela “matriz” em uma dessas escapadas furtivas, onde levou, além do fora das duas, uma descompostura monumental. Da matriz e da filial.

Voltando ao Salomão, ele era um dos bons vendedores de bilhetes, vendendo mais de cinquenta bilhetes inteiros por extração, porem às vezes não conseguia vende-los todos e quando isso acontecia era obrigado a concorrer com as sobras, que normalmente, seguindo a Lei de Murphy, raramente eram premiados.

Os bilhetes mais fáceis de vender eram os bichos chamados de “escolhidos”, tais como Cobra, Borboleta e Vaca, e os piores eram Avestruz, Veado, Peru, nessa ordem. As extrações, como é ainda hoje, aconteciam às Quartas-Feiras e Sábados e o grande prêmio era para quem comprasse a quina fechada (que consistia em cinco bilhetes com o mesmo número) e acertasse o numero correspondente ao primeiro prêmio.

Pois bem, em um sábado bem já de tardinha, perto da hora de correr a extração, o Salomão estava amargando um encalhe de duas quinas, ou seja, dez bilhetes, e para piorar, duas quinas do mesmo bicho, justamente o bicho que ninguém comprava. 

As duas quinas eram do bicho “Avestruz”; uma com o final 04 e a outra com o final 01 (a pior delas para vender).

Já desanimado, subindo a Rua Padre Zeferino, rumando para a pensão da Serginha e do Emílio, na Martim Francisco ao lado da “Farmácia do Babá”, onde morava também a Núbia de Oliveira, parou em frente ao consultório do meu amigo dentista Além Mar Paranhos, que era a sua última esperança de desencalhar pelo menos uma das quinas.

Do alpendre do consultório ele gritou o “Mazinho” (apelido do Alem Mar) que saiu na porta e depois de alguma negociação o Mazinho combinou que pagava na lista, isto é: depois que o Salomão levasse a lista com os resultados e conferissem. Era comum esse procedimento.
Fechada a negociação o Mazinho não quis ficar com as duas quinas e passou para a fase de escolher a quina com a qual concorreria.

Quando olhou as duas Avestruzes, o Alem Mar fez cara feia, mas como já tinha combinado, escolheu os bilhetes terminados em 04 e voltou para seus afazeres no consultório.

Meio aliviado por ter diminuído o prejuízo, o Salomão atravessou a rua batendo a bengala no meio fio e assim que subiu na calçada, uma caminhonete encostou ao seu lado e o motorista perguntou para o Salomão se ele ainda tinha bilhete para o sorteio da tarde.

Ele assentiu e o freguês perguntou:

-Tem Avestruz? Quero uma quina do Avestruz com o final 01!!!!

O Salomão pensou: meu Deus, é muita sorte!

Seguindo a lei de mercado, tendo procura, aumenta-se o preço e o Salomão vendeu a quina com um belo ágio, e foi feliz bebericar uma cerveja no “Cacique”, onde ficou até tarde da noite.

Chegando na pensão, o Emílio abre a porta para ele e diz que o Mazinho o esteve procurando e como ele não estava, resolveu deixar uns bilhetes para que o Emílio lhe entregasse.

A Serginha ao lado comentou que o Mazinho estava com cara de desolado e pediu ao entregar os bilhetes para que dessem os parabéns pra ele, que ele merecia.

- Deu o final, pensou o Salomão, sendo assim o bilhete havia sido premiado com o mesmo dinheiro que custou e a dívida estava quitada.


Mas parabéns por que? O Salomão ficou sem saber até no outro dia quando os dois se encontraram na missa da igreja São Domingos.


Explico: a quina terminada com o final 01 foi contemplado com o primeiro prêmio daquele sábado e o Mazinho achava que o Salomão não conseguira vender os bilhetes, tendo por consequência ganhado a bolada e ficado rico.

Foi isso que havia acontecido.
Rezaram e choraram bastante juntos.


Marcelo Caparelli

terça-feira, 3 de novembro de 2020

JOGO DO BICHO

Meus avós nasceram, cresceram e se casaram em uma pequena comunidade no sul da Itália, região da Calábria, por nome de Mongrassano.

Fugindo das dificuldades do pós guerra embarcaram em Nápoles e desembarcaram no porto de Santos no ano da semana de artes modernas de 1922 em um navio chamado Cesare Battisti.

Vieram nessa leva meu avô, minha avó que estava grávida do meu pai e a Tia Anita com dois anos.

Muitos anos depois, a “nona”, que era assim que nós a chamávamos, me contou que ao desembarcar em solo brasileiro, o “nono” tapou seus olhos para que a sua primeira visão de humanos no Brasil não fosse a de um negro e assim, por consequência, o bebê não nascesse negro, visto que eles jamais haviam contemplado um “niuro” (era assim que ela os chamava).

Eles vieram na esteira do Tio Eduardo que já havia imigrado anos antes e era irmão da nona.

Sendo um exímio alfaiate havia se estabelecido em Uberlândia e era pai do “Fabinho”, sobrinho e próspero (e põe próspero nisso) banqueiro do “jogo do Barão”, vulgo jogo do bicho.

Meu avô veio para Uberaba em 1939 seguindo os conselhos do Fabinho, para abrir aqui uma, digamos, filial do negócio dele em Uberlândia e montou a “casa lotérica “Estrela Aparecida” que ficava em uma das lojas do Hotel Modelo na Artur Machado.

Ali, além de fazer o jogo do bicho, vendia bilhetes e, conta meu tio Benito, tinha uma roleta nos fundos, onde, por ser um tanto quanto barrigudo, controlava a parada da bolinha apertando um botão estrategicamente posicionado, pressionando esse botão com a “pança”.

Mas isso já é folclore.

O certo é que com esse DNA a família toda gostava de qualquer tipo de jogo, inclusive eu, que com 15, 16 anos, já jogava baralho, sinuca, pebolim, além de apontar o jogo do bicho, tendo na família alguns dos meus melhores clientes.

Todos sabem (pelo menos os viciados) que a chave para ganhar no jogo é ter um sonho e decifrá-lo corretamente. Sabendo essa arte, é batata acertar um pulo, um grupo, ou até mesmo uma centena. Existem até livros que ensinam como desvendar todos os mistérios dos sonhos e transformá-los em palpites certeiros.

A tia Ilza, (Ilza Cussi – mãe da Rosa, da Ângela, da Alzirinha e da Sandra) era uma expert nessa arte e muitas vezes acertava os palpites.

Certa feita, ela me ligou e pediu para jogar dois cruzeiros no grupo do Leão na cabeça. Eu perguntei, querendo que ela apostasse um pouco mais, se ela não queria jogar mais dois cruzeiros de 1º ao 5º que era para salvar a aposta.

Ela não quis e disse enfaticamente:

Vai dar na cabeça, eu sonhei. Meu sonho não falha!

Anotei no talão, entreguei a cópia e no fim da tarde olha o Leão na cabeça!

A tia ganhou 36 cruzeiros que eu, no outro dia fui levar para ela.

Morrendo de curiosidade para saber o sonho da tia, já fui logo perguntando ao entregar o dinheiro:

- Mas que sonho certeiro foi esse, tia?

Ela não se fez de rogada e contou o sonho:

- Sonhei que era menina e estava catando jurubeba no mato com a Mariita.

- ?!?!?!???!?!?!?!?!??!?!?!?... Uai tia, o que tem a ver?

Com aquele jeito educado de ser ela responde:

- Você é burro? Olha em cima da mesa.

Olhei e tinha uma garrafa de vinho que era muito popular naquele tempo.

“Jurubeba, Leão do Norte”.

Saí sorrindo e pensando: - Vai decifrar sonhos assim no inferno!!!!

Marcelo Caparelli 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

“COCOZINHO”

Uma outra passagem do meu falecido pai:

Já no seu leito de morte, minha mãe, dona Mariita (com dois “is” mesmo) se revezava com uma cuidadora nos cuidados do meu pai, que sendo acometido pela diabete, teve, além de um AVC, os rins e a visão comprometidos, ficando acamado permanentemente no último ano de sua vida, porém sem perder nunca a lucidez.

A cuidadora que atendia por Marlene, entrava às sete da manhã e ficava até às cinco da tarde e uma das tarefas que ela executava assim que chegava, consistia em trocar meu pai, já que ele foi obrigado a usar fraldas geriátricas, dada a sua total impossibilidade de locomoção.

A Marlene, assim como a maioria das cuidadoras e enfermeiras em geral, tinha a tendência de infantilizar o paciente, usando e abusando dos diminutivos com expressões do tipo: “a comidinha tá pronta”; “quer um leitinho?” “tá na hora do seu banhozinho” e assim por diante.

Meu pai não falava nada, mas acho que ele não gostava muito daquilo, até que um dia, a Marlene, chegando em casa, encontrou, como sempre, meu pai já acordado e, de praxe, começou com o martírio, tentando puxar conversa com ele:

- Bom dia “seu” Armando, passou bem a noite?

E ele, mentindo, porem altivo e resignado manteve o diálogo
- Muito bem Marlene...sonhei que estava pescando com o Tufizinho (pai do Cássio Facure) e o Ari (Ari Rossi, irmão de maçonaria e companheiro de pescarias).

- Que gracinha, seu Armando, continuou ela, sem prestar atenção na pescaria dele e já cortando a sua fala, quase que maquinalmente lascou duas perguntas absolutamente impertinentes e constrangedoras:

-Fez cocozinho, seu Armando?

- Fiz sim, respondeu ele, já meio sem paciência.

- Fez muito, “seu Armando?

Eu não presenciei a cena, mas minha mãe contava que riu o dia todo da resposta do Kappa e da perplexidade com que a Marlene recebeu a resposta:
- Não sei, não pesei!!!


Marcelo Caparelli


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Cidade de Uberaba

O filante

Pelo caso das Bananadas vocês tiveram uma ideia da presença de espírito do meu pai, que para quem não sabe era o saudoso José Armando Caparelli, exemplo de caráter, honradez, honestidade e dedicação à família.

Essa passagem diz respeito ao Sebastião Carlos da Silva, vulgo Tião, morador do bairro EEUU que contava com a mesma idade do meu pai e os dois foram convocados para a guerra na mesma época.
O Tião, ao que parece, veio de fora para jogar futebol no time do independente e foi alocado nos correios, pois como salário de jogador era curto na época, tornava-se necessário arranjar alguma atividade complementar e remunerada para as contratações dos clubes.

Meu pai e o Tião eram amigos e serviram juntos em Juiz de Fora onde aguardavam ser chamados para compor as tropas brasileiras na Itália. A companhia do Tião foi embarcada no final de agosto de 1945 no Rio de Janeiro, enquanto a companhia do meu pai embarcaria cinco dias depois, ficando aguardando em Juiz de Fora.

Foi quando a guerra acabou (2/10/45), com o Tião no navio e meu pai em terra.
Parece a mesma coisa, pois nenhum deu um tiro sequer e nem ao menos pisaram em solo italiano. Mas para o governo da época não, pois o Tião deu baixa recebendo soldo de ex-pracinha e meu pai ficou “a ver navios’.

Tenho a suspeita que a expressão nasceu aí.

Contam que ele era um tanto quanto “controlado” em questões financeiras e não gastava um centavo com supérfluos, e acho que nem com os “principais”; em suma, era um belo de um “pão duro”.
O Tião que depois de dar baixa no exército nunca pegou no batente, passava todos os dias de manhã na lotérica e convidava meu pai para tomar café e comer uns biscoitinhos, coisa que meu pai às vezes ia, às vezes não, dependendo do movimento na loja. Só que o lugar desse pequeno lanche matinal, não era em lanchonete alguma; o destino do sovina, pasmem vocês, era a funerária Pagliaro onde, quando tinha velório, tinha sempre uma mesa com quitandas, café, leite e chá para os presentes.

Nessa época, meu pai praticava o tabagismo, bem como o Tião e numa dessas incursões funerárias, depois de cumprimentar os parentes do defunto, e depois de fazer a devida “boquinha”, saem os dois e meu pai saca um “minister“ do bolso, acende e dá uma bela tragada, já esperando o Tião tentar filar um cigarro dele.

Antes de voltar o cigarro à boca para a segunda tragada o Tião, seguindo seu mau hábito de filante inveterado, pediu um cigarro para meu pai, que já esperando, ironizou:
- Tião, você tá fumando muito!

Mas pão duro tem sempre uma resposta pronta:

- Caparelli, eu fumo, mas não trago...

Num átimo a resposta veio definitiva:

- Pois devia trazer, Tião!


Marcelo Caparelli


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quinta-feira, 15 de outubro de 2020

O menino que esqueceu o duplo

Esse caso vai para meus companheiros de loteria.

Antes de contar esse caso, cabe uma explicação para quem não sabe como funcionava a loteria esportiva na época:

O jogo custava CR$2,00 e o apostador marcava o resultado de treze jogos e se acertasse os treze palpites ganhava o prêmio. Além dessas marcações, na cartelinha de marcação (volante) deveria constar obrigatoriamente um palpite DUPLO que nada mais era do que duas marcações em um único jogo, por exemplo: digamos que um dos treze jogos constasse Bahia X Náutico e o apostador resolvesse colocar o duplo nele; então ele escolheria dois resultados possíveis (por exemplo: vitória do Bahia e empate) e se acontecesse um desses dois resultados, ele garantiria o ponto desse jogo.

Isso posto, vamos aos fatos: Já de tardezinha, depois de passar a tarde toda no caixa, me surge um senhor já entrado na casa dos setenta, acompanhado de um garoto, ao que tudo indicava, seu neto. Me entregou um punhado de “volantes” e eu, antes de perfurar os cartões na máquina, conferi os jogos para ver se estava certo, que era o procedimento para não fazer jogo errado.

Notando que um dos volantes faltava o palpite duplo alertei o senhor mostrando o volante:
- Senhor, esse volante tá faltando o duplo, o senhor esqueceu.
Uma fração de segundo e ele responde:

- Não taí não?

- Não.

Ele pensa um pouquinho e fala para o menino: - Dito, cadê o duplo?

- Uai, não sei, diz o menino, acho que esqueci em casa...

- Ô menino esquecido, puxou a mãe, né? Já te falei prá prestar atenção nas coisas.

Antes que a bronca aumentasse e me segurando para não rir, chamo o idoso:

- Senhor, eu tenho um duplo aqui de reserva e coloco para o senhor.

Dito isso fiz a marcação, registrei a aposta desejei boa sorte e ele saiu ainda ralhando com o menino.


(Marcelo Caparelli)

Par e Liga

Éramos um grupo de devotos de São Cono, que, como todos sabem, é o santo protetor dos jogadores. Como bons devotos, nos reuníamos toda segunda feira no templo erigido nos fundos da minha casa, onde realizávamos o nosso culto.

Havia ali, e há até hoje, um fogão à lenha, pilotado por mim e de onde saía um frango caipira, um arroz carreteiro, uma costelinha com canjiquinha, etc.

Ao contrário de outros cultos, o nosso era acompanhado de muita cerveja, uma cachacinha de “guia” e qualquer bebida alcoólica que algum fiel levasse.

Para quem não é familiarizado com esse importante santo da igreja católica, transcrevo aqui a oração de São Cono:

Senhor, eu não quero pecar te pedindo sorte no azar, mas quando você quer pode nos atender através de São Cono uma mão para ganhar uma aposta: se é dia 3 porque é o dia da sua morte; se é 7 e no 07 porque é o número que somam as letras do nome de São Cono; se é 18 é pela idade em que faleceu; se é 11 porque é o número da sua Igreja na Flórida (Uruguai); se é 60 é porque quando trouxeram sua imagem da Itália numa das suas sandálias estava esse número; se é 72 é porque é o final do ano em que foi canonizado em Roma; se é 85 é o final do ano em que se inaugurou sua Igreja.

Senhor, se sou merecedor da sua graça, através de São Cono conceda-me. Amém”
O “altar” que foi confeccionado pelo artista Oripinho, vulgo “bicudinho”, em razão do seu mau humor constante, consistia em uma mesa redonda que abrigava com folga doze fiéis que das 20h até por volta da meia noite, rendiam homenagens ao já citado santo.

É claro que estamos falando do jogo de Cacheta onde os amigos, muito fraternalmente, tentavam tomar o dinheiro uns dos outros.

Os mais assíduos eram: Vandinho; Carijó; Marcão; Brás; Oripim, já citado; esse que vos relata, Simeão; Márcio; Furiati, Godoy; Sakamoto; Adalberto Namura e outros que me escapa os nomes agora.

Entre os eventuais tinha o Moura Miranda, que já estava se tornando habituée das reuniões.

Mas o Moura, apesar de cartear como um príncipe, tinha um azar danado. Parece que o Santo não lhe escutava as preces, ou achava que outros eram mais merecedores que ele, (vai entender esses santos).

Juntava-se a isso as imprecações que o Moura não parava de proferir e estava formada a “tempestade perfeita”.

Numa segunda feira, o jogo seria pif-paf (uma variação da cacheta) e logo na primeira mão, o nosso glorioso Moura sai com dois jogos prontos e um par-e-liga, ou seja, estava “na boa”. Como o pif paf não tem curinga, esse é uma grande mão e vence na maioria das vezes. Para melhorar, cinco jogadores entram na aposta e a mesa fica coalhada de fichas.

Infelizmente, para ele e felizmente para o Zé Coquim, que tinha acompanhado com dois pares e uma “gaveta”, faz boa justamente na gaveta e para o desespero do Moura, depois de muitos descartes, bate com uma dama de copas que dobrou no par do Moura.

Foi a gota d’agua. O Moura, muito bravo, chinga o santo, chinga o Zé coco, maldiz a sua sorte, e, cúmulo da indignação, taca (essa é a melhor expressão que retrata o feito) o baralho na mesa, se levanta e dispara:

-Nunca mais jogo essa merda, que me dê uma doença ruim na mão se eu jogar de novo!

Disse isso e foi embora pisando duro, sem comer e sem dar ouvidos aos amigos que tentavam dissuadi-lo.

Retomada a normalidade do jogo, foi instituído um ”bolão” para saber se o Moura cumpriria a promessa. Opiniões dividas, eu apostei e fui acompanhado por mais cinco de que ele não voltaria mais.

Na semana seguinte, seguindo o protocolo, liguei chamando e laconicamente, recusou. Na outra semana a mesma coisa, bem como na seguinte.

Foi estabelecido então, para os efeitos do bolão, que o prazo seria semana seguinte. Se ele não voltasse, seria decretado a vacância da vaga e outro jogador seria colocado no lugar dele.

Na segunda liguei e ele nem atendeu o telefone!

-Ganhei o bolão, pensei com meus botões.

O menu daquela segunda era costelinha de porco e para surpresa geral, lá pelas 21:00h (que era mais ou menos a hora que saía o rango) surge o Moura, meio que desconfiado, meio que sem graça, parecendo cachorro que peidou na igreja.

-Noite!

- Baum? Respondemos.

O Moura rodeou a mesa, foi nas panelas e antes que alguém perguntasse, disse:

- Passei só prá comer essa costelinha. Disse isso e se serviu antes de todos.

O jogo pausou e todos fomos comer.

Finda a refeição, o jogo retomou e o Carijó que havia apostado que ele voltaria ao jogo começou a pressionar o Moura para ele jogar.

O Moura bisbilhotando (sapeando) o jogo, resistia heroicamente. Porem a resistência foi esmorecendo e o Carijó percebendo que ele precisava de um empurrãozinho sai com essa:

- Ô Godoy, tá sabendo do tratamento novo no Hélio Angotti?

- Sei não, responde o Godoy

- Bomba de cobalto! Cura qualquer doença ruim que der nas mãos.

O Moura, prestando atenção na conversa e já com coceira na mão de vontade de cartear, puxa uma cadeira e fala pra mim que distribuía as cartas:

-Que se dane (a palavra foi outra)! Me dá as cartas!

Parece que o santo não cobrou a promessa do Moura, que continuou com seu azar e jogando como um príncipe.  

(Marcelo Caparelli)

Lei de Murphy

Se algo puder dar errado, dará.

No dia-a-dia da lotérica, sempre acontecia de um cliente vendo o resultado, dizer que aqueles eram os seus números, mas que esquecera de jogar; que a mulher não o deixou jogar; que trocou os números na última hora; que jogava aqueles números toda semana e parou exatamente naquele sorteio; enfim, o repertório de lamúrias era grande.

Eu particularmente não acreditava em nada daquilo, mas como um bom vendedor de ilusões (como o amigo Tharsis me chama), lamuriava junto com o cliente, lamentava a sua (dele) má sorte e tascava sempre o bordão dos tempos do meu pai: “Quem não arrisca, não petisca, galinha morta não belisca, quem não morre não vê Deus!”

Parênteses para esse bordão: meu pai escutava isso na praça da Sé em São Paulo lá pelos idos de 1960 quando o comércio de bilhetes de tiras era o “Ó do borogodó” e a praça da Sé funcionava como uma bolsa de bilhetes onde o Brasil inteiro ia buscá-los para revender nas suas cidades. Para se ter uma ideia do quanto era concorrido esse tipo de sorteio, meu pai colocava um rádio de válvulas (que era ligado bem antes, dando tempo para que as válvulas esquentassem) na porta da loteria onde os apostadores acompanhavam em “ondas curtas” o resultado que era transmitido ao vivo das dependências da CAIXA.

A frente da loteria ficava lotada de apostadores, ganhando de longe da aglomeração diária na frente do saudoso Lavoura e Comércio onde os transeuntes se juntavam para ler as manchetes das notícias que sairiam à tarde.

Voltando à história: era eu o responsável por fazer os jogos dos clientes que repetiam toda semana os mesmos números. Como não existia ainda a teimosinha, meu trabalho era transcrever nos volantes os jogos dos clientes que ficavam no “caderno de jogos”.
Não mencionei o ano do acontecido, mas decorria o ano de 1987 no auge do governo Sarney, onde a inflação galopava e os aumentos no preço dos jogos eram da ordem de 80 a 100% a cada seis, sete meses.
Quando o aumento era anunciado, eu ligava antes para cada um dos clientes para saber se podia repetir os jogos com o preço novo.

Um desses clientes era o Sr. João Pedrosa, eletricista e pai da advogada Jussara Pedrosa (nem sei se ela sabe desse caso), que morou certa época na casa nos fundos da nossa, na rua Sete de Setembro. O jogo dele era, me recordo bem e ainda guardo os recibos, a LOTO, que mais à frente se modernizou e transformou-se na QUINA tal qual a conhecemos até hoje.

O jogo do seu João se consistia em 26 apostas que custavam, no preço antigo, a bagatela de CZ$300,00 (reparem a moeda da época, cruzados).

Em um desses aumentos, liguei para ele informando que o jogo passaria a custar a partir do próximo concurso o valor de CZ$ 583,00 e ele depois de muito reclamar do novo preço, e de lançar impropérios ao governo, me autorizou a repeti-lo.

Na terça feira, ele foi buscar o jogo. Pagou, já com o preço novo, conferiu com o resultado (corria às segundas), pensou um pouco, e me disse que a partir do próximo concurso faria só a metade dos jogos, pois estava ficando caro para ele. Perguntei quais jogos ele queria que repetisse e ele me pediu o caderno e riscou metade das apostas.

- Tira esses que eu risquei e repete o resto. Disse ele.

- Olha que isso não vai dar certo seu João, repliquei e já tentando dissuadi-lo argumentei, procurando provocar nele um medo de ver um bilhete seu premiado e não jogado:

- Olha que pode sair o prêmio nesses jogos que o senhor tirar, hein...

Tentei de todas as formas possíveis. Citei até a 13ª Lei de Murphy (“quando o pão cai, cai sempre com a manteiga prá baixo”), “e na terra” completou magistralmente Adoniram Barbosa o aforismo:
Porem ele ficou irredutível.

- Ô Marcelo, ponderou ele; acompanho esse jogo tem mais de três anos e só fiz terno (acerto de três dezenas, com premiação pequena) até hoje.

Desisti então da empreitada e o jogo foi feito do jeito que ele pediu para a semana vindoura e que seria o concurso Nº 423 do dia 01/06/1987.

Novamente, na terça feira seguinte ele apareceu e me chamou para pegar o jogo.
Pelo seu tom de voz e pela absoluta palidez que ele estampava no rosto, senti que havia algo errado com ele e perguntei:

- Que foi seu João?

- Me mostra o caderno para eu ver que jogos eu risquei, pois no meu jogo original eu acertei as cinco dezenas!

Como o prêmio havia acumulado, de imediato deduzi que ele havia riscado a aposta vencedora. Não falei nada e mostrei o caderno para ele, temendo que ele tivesse um enfarte assim que visse os jogos riscados. Ele pegou o caderno, deu uma olhada rápida, deu uma limpada nos olhos, olhou novamente, agora mais demoradamente, certificando-se de não ter visto errado, ficou mais pálido ainda, coçou a cabeça por uns eternos 20 segundos, me devolveu o caderno fechado e saiu sem falar um “a” e sem enfartar, graças a Deus!.

Abri caderno novamente só para conferir qual foi a aposta riscada por ele e era um jogo de 7 dezenas (21 25 32 34 40 93 94).

O resultado oficial do concurso 423 trouxe as seguintes dezenas sorteadas: 21 25 32 93 94.
Foi realmente uma pena pois o prêmio em dinheiro de hoje seria, nos meus cálculos, uns 5 milhões de reais.

O seu João continuou a repetir seu jogo comigo por mais um tempo, mas a sorte para ele sempre foi tirana. Só bateu à sua porta uma vez.

(Marcelo Caparelli)