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sábado, 31 de dezembro de 2016

A cada manhã


“Quando abro a cada manhã a janela do meu quarto


É como se abrisse o mesmo livro 


Numa página nova...” Mário Quintana 


A vida é assim: como a manhã que se abre a cada dia, pela janela do quarto. E vemos a aparente mesma paisagem que, aos nossos olhos, não é a mesma. Ontem, o bem-te-vi cantava no galho da primavera florida. Hoje, um casal de sabiás encanta o raiar do sol com seu trinado romântico, talvez triste, talvez alegre. 

Não vejo mais o galho vermelho das flores tão viçosas: o vento e a chuva, lavando a terra, levaram para longe, uma a uma, cada flor daquela penca tão viçosa. 

Assim o mesmo livro numa página nova. Nem tão nova assim, mas trazendo ao pensamento e ao coração, pela lente da sensibilidade, o que não fora percebido antes. Leiamos várias vezes a mesma página, e a cada leitura uma nova sensação, uma nova depreensão nos assoberba a mente, como se se renovasse a cada pensar. 

Pela janela da alma, também enxergamos as feições humanas, muitas talvez indecifráveis ao nosso olhar, que pensa estar enxergando uma página nova da vida que se posta diante de nós, mas que o olhar mais atento vê que nada é tão novo, e se repete, e que outro olhar mais atento ainda percebe que uma nova página se abre, talvez melhor, mais voltada para o outro, sorriso franco em direção a quem dele precisa. 

Tudo parece tão igual e, ao mesmo tempo, tão diferente: a janela de nossa alma que se abre, captando alegrias inesperadas, ou melancolias inexplicáveis – quem pode entender a alma humana? -, é um ancoradouro de emoções, como aquelas que uma página daquele mesmo livro, nova naquele momento, nos coloca diante dos olhos aquilo em que não havíamos pensado antes e que, de repente, nos embala em sensações reconfortantes e acolhedoras. 

O filósofo Heráclito de Éfeso disse que ninguém “pode banhar-se duas vezes no mesmo rio”: a margem do rio pode ser a mesma, o horário o mesmo, mas as águas já se foram, são outras. 

Assim a mutação em nossas vidas: enganosamente, julgamos estar vivenciando as mesmas emoções, quando comemoramos uma data, quando olhamos uma foto longínqua no tempo, quando ouvimos palavras já ouvidas antes, quando tentamos recuperar um momento bom vivido no passado. No devir da existência, o passado virou presente que já não é o mesmo que se foi. 

Mas seres limitados, crédulos, continuamos a abrir a janela de nosso quarto e de nossa alma, tentando ler, naquele velho livro, já tão gasto, algo que nos traga a novidade que nos apascente o coração. 



12 de janeiro de 2014



Terezinha Hueb de Menezes