CARA A CARA
O Tudo e o Nada
Guido Bilharinho
Quando Júlio Bressane (Rio de Janeiro/RJ, 1946-) - um dos
mais importantes cineastas do mundo contemporâneo - estreia no longa-metragem
com Cara a Cara (1967), a estética cinemanovista está praticamente exaurida,
sobrevivendo, ainda, em espécimes realizados apenas pelos seus prógronos, em
tentativa de correspondência com a nova realidade objetiva e subjetiva
emergente, antagonizadora das bases teóricas e políticas fundadoras do cinema
novo.
As novas
gerações jazem política, social e culturalmente sufocadas e alijadas de toda
possibilidade de interferência e influência no contexto.
Cara a Cara
emerge, pois, num momento de interseção, no qual a liberdade e os ideais do
passado recente, sepultado pelo golpe militar de 1º de abril de 1964 - dito de
31 de março - ainda lutam por espaço de ação e atuação, que lhe seria total e
provisoriamente (por alguns anos) interditado. Dos escombros dessa liberdade e
desses ideais, momentaneamente reprimidos, origina atitude de impotência,
desânimo e até desespero.
Cara a Cara é
considerado filme transicional entre o cinema novo e o cinema marginal que a
partir daí se instaura. E o é por conter em si, em amalgamada síntese, a
bipolaridade estético-política do cinema brasileiro de então.
No paralelismo
das duas estórias nele desenvolvidas encontra-se a simultânea convivência
espaço-temporal do nada com o tudo.
O
protagonista, dilacerado entre desejo inalcançável e existência anônima afogada
em rotina, tristeza, miséria e falta de perspectivas, pode muito bem
representar a impotência política e social dos segmentos sociais antes
impulsivos, esperançosos e dinâmicos, mas, à época, presos de idêntica
sintomatologia.
Em contraste,
situa-se o político articulado, elegante, determinado e... inescrupuloso,
significando o predomínio e a capacidade de ação e coordenação dos grupos
dominantes antes acuados e temerosos.
O filme reúne
e põe lado a lado, pois, as duas faces da mesma moeda brasileira no momento que
passa, isto é, na oportunidade de sua própria realização.
Por ambos os
aspectos humano-sociais e políticos abordados traduz visão haurida do cinema
novo, que, então, por sinal, lança alguns de seus filmes onde mais diretamente
focaliza a atuação dos grupos dominantes em contraposição à ação (ou inação)
das classes sociais dominadas.
Assim, sob
tais enfoques, constitui revelação denunciadora das manobras e propósitos dos
primeiros e amostragem das condições de vida de elemento símbolo das segundas,
formalizando crítica da situação do país.
Contudo, e
isso o distingue e o eleva acima da média, mesmo sendo filme de estreante, não
a faz direta, parcial e primariamente. Basta-lhe, a Bressane, recriar os
ambientes físico-sociais onde vivem e agem as personagens e, mais importante, o
modo de ser de suas duas figuras emblemáticas: o servidor público e o político.
A disparidade
visual, social e cultural que estabelece entre esses mundos torna-se mais
profunda e grave por sua proximidade física, mesmo e até por isso, não se
tocando, não se encontrando nem, muito menos, se comunicando.
Essas
contiguidade e contemporaneidade ampliam e exacerbam o distanciamento abismal
que os separa e aparta.
Nada mais
apropriado para fixar esse antagonismo irremediável do que a impossibilidade de
realização do mais orgânico dos impulsos, o sexual.
O contato
desses dois mundos antípodas dá-se por meio do maior dos desencontros
possíveis, quando as forças paroxísticas que às vezes governam o ser humano,
por emergidas inopinadamente do fundo recalque de sua natureza e dos elementos
que a compõem e a conformam, entram em insopitável ebulição, desencadeando o
caos, o crime, a violência.
O abismo
entre essas classes, entre as benesses e possibilidades que aureolam uma e as
agruras, carências e impossibilidades que manietam, confinam e sufocam outra,
é, então, transposto, mesmo sendo verticalmente profundo e horizontalmente
amplo.
No choque daí
resultante igualam-se os desiguais, porque, só aí e então, põe lado a lado o
que seus representantes realmente são: simples seres humanos.
Todas as
barreiras caem face à tragédia humana, a mais violenta e radical, que, de uma
vez por todas e em definitivo, sela a desigualdade, deflagrando o ódio.
Tal
encaminhamento e desfecho da trama poderia, no entanto, constituir e desaguar
em mero e espúrio dramalhão, como inúmeros que infestam telas, livros e palcos,
ofendendo a inteligência.
No entanto,
no caso, mercê de concepção e propósito conjugados com seguro domínio dos meios
expressionais do cinema, tem-se depurado, parcimonioso e adequado tratamento
temático e formal, que redunda contido e equilibrado. O uso sofisticado da
imagem e das possibilidades dos movimentos e enquadramentos da câmera aliado à
seleção rigorosa e criteriosa dos décors de interiores e de locações e aspectos
dos exteriores resultam, por sua vez, em construção fílmica de rara beleza
imagética num filme de requintada elaboração estética sob a simplicidade de seu
aparato infraestrutural.
(do livro Seis Cineastas Brasileiros. Uberaba,
Instituto Triangulino de Cultura, 2012)
(Leia na página Obras-Primas do Cinema Brasileiro
toda segunda-feira novo artigo -
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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da
revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de
Literatura (poesia, ficção e crítica literária), Cinema (história e crítica),
História (do Brasil e regional).