Mostrando postagens com marcador Idílio Cardosi. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Idílio Cardosi. Mostrar todas as postagens

sábado, 5 de dezembro de 2020

Aumento de salário

Eu comecei a trabalhar na loteria bem novinho (já com nove anos atendia o balcão, vendendo bilhetes) e também comecei a ler cedo, muito cedo.

Devorava os gibis da época, adorava tio Patinhas, Mickey, Donald e em consequência desse vício, o meu “salário” era investido quase todo na Banca do Vilmondes, pai da dona Sônia.

O restinho que sobrava ficava no bar do Lara, que fazia uma coxinha com 90% de batata e 10% de recheio, mas que eu adorava.

A transição para uma leitura, digamos, mais culta, se deu quando descobri os livrinhos de faroeste. Foi paixão à primeira vista.

Mas aí deu-se o problema; para comprar aqueles hebdomadários, que como todos sabem é uma publicação com frequência semanal, teria que abdicar de algum gibi ou, extremo suplício, retirar a coxinha do cardápio.

Como nenhuma dessas duas hipóteses me agradaram, cogitei de pedir algum socorro pecuniário.
Primeiro pedi para Nona, depois para minha mãe, mas as duas não vendo utilidade alguma naquelas aquisições semanais, negaram terminantemente as minhas súplicas.

Porém, a Nona com sua sabedoria infinita, me aconselhou a pedir um aumento de salário ao meu pai e me instruiu para que, caso ele perguntasse o motivo, dissesse que eu estava trabalhando muito, pois como estivesse em recesso escolar, estava trabalhando de manhã e de tarde.

Acho que ela já sabia como seria a conversa, pois deu uma risadinha sacana e me despachou para a sala, onde meu pai assistia TV.

Foi aí que a porca torceu o rabo! O diálogo com meu pai deu-se mais ou menos assim:
- Pai, tô preciso de um aumento no meu salário, e atropelando o conselho da Nona, já adiantei o argumento: - acho que eu tô trabalhando muito.

-Hummmm, disse ele, criando um leve suspense.

- Vamos ver, então. Pega o lápis e caderno, vamos lá prá mesa calcular seu aumento.

-Opa, agora me dei bem; pensei tão alto que até fiquei com medo dele escutar.

Feito os preparativos, meu pai começou os cálculos.

-Quantas horas você está trabalhando por dia?

- Oito, respondi.

-Então, sabendo que o dia tem 24 horas e você trabalha 1/3 do dia, podemos afirmar que você trabalha 1/3 do ano, que arredondando dá 122 dias trabalhados, certo?

Tá certo, assenti, já começando a desconfiar daquela conta.

E ele continuou:
- Dos 122 dias trabalhados, temos que descontar os domingos e metade dos sábados, em que você não trabalha, certo?

Então descontando 52 domingos sobram 70 dias que você trabalha e descontando mais 26 dias correspondentes aos sábados, sobram agora 44 dias, certo?

Realmente eu não trabalhava nem aos sábados à tarde e muito menos aos domingos, então, relutantemente, concordei, com a pulga atrás da orelha já me incomodando.

Antes que eu raciocinasse melhor ele continuou:
- Agora temos que descontar 30 dias de férias que você passa em Brasília com seus primos, daí sobram 14 dias, certo?

Confesso que aqueles “certo” no final dos cálculos já estavam me dando nos nervos, mas ele implacável continuou:
- Temos agora que descontar os dias santos e os feriados nacionais que somam 13!

Aí não aguentei:
– ô pai, quer dizer que eu só trabalho um dia no ano todo?

O Arremate foi o melhor:
- Não senhor, respondeu; amanhã é o dia do trabalho e ninguém trabalha esse dia!

A nona ria muito da minha cara de aflição por não ter conseguido o aumento, mas deu a solução para a aquisição dos sonhados livrinhos de faroeste.

-Vai lá no Idílio Cardosi, que ele tem alguns e te empresta.

Saí correndo na sete de setembro e passando no bar do seu João na esquina da Padre Zeferino vi o Idílio lá dentro e perguntei se era verdade a informação da nona.

Ele confirmou a veracidade do fato e disse para escolher qualquer um na casa dele, que ficava a uns 20 metros descendo a rua.

Chegando lá a dona Magda, sua esposa, me atendeu e mandou que eu entrasse para escolher alguns.
Quando entrei no quartinho onde ele guardava os ditos cujos, quase caí das pernas.

Havia lá, calculando modestamente, mais de 2000 livrinhos daqueles e tanto meu amigo Astolfo, sobrinho do Idílio quanto o Justino, seu filho, são testemunhas vivas desse fato.

Foi assim que fiz a transição do gibi para leitura de livrinhos de faroeste, que me levariam a outras leituras, mas isso já é outra história.

Marcelo Caparelli