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terça-feira, 17 de dezembro de 2019

O ITALIANO QUE MUDOU A FACE DA CIDADE

O que têm em comum em nossa cidade o sobradão da Câmara Municipal, a Santa Casa de Misericórdia, a velha Fábrica de Tecidos do São Benedito, os prédios do Senai/Fiemg, a capela do Colégio Nossa Senhora das Dores, a sede da Associação Comercial, o Asilo Santo Antônio e o Sanatório Espírita? Todos esses prédios – entre centenas de outros menos conhecidos – têm a mão daquele que foi o maior dos construtores que repaginaram a cidade de Uberaba na primeira metade do século passado: o imigrante italiano Santos Guido.

Santos Guido (de terno claro), Alfredo Sabino, José Mendonça e Odilon Fernandes
 em reunião do Rotary Club de Uberaba, 1963.Fotógrafo não identificado / Casa do Cinza

Nascido na pequena vila de Scigliano, na região da Calábria (a ponta da “bota” no sul da Itália) em outubro de 1889, Santos Guido chegou em Uberaba ainda muito jovem. Em 1913, com pouco mais de 20 anos de idade, foi um dos fundadores da Liga Operária local – provavelmente a primeira das iniciativas associacionistas que marcaram a sua vida em nossa cidade. “Oriundi” orgulhoso de suas origens, foi um dos fundadores (e primeiro presidente) do time de futebol Palestra Itália de Uberaba, em 1918. Nas décadas seguintes, trabalhou pela estruturação da Associação Comercial e da liga “Fratelanza Itália”. Foi ainda membro do Rotary Clube e da Loja Maçônica “Estrela Uberabense”.

Prédio em estilo Art Decó onde funcionava a carpintaria e o depósito de materiais de construção das Indústrias Santos Guido na década de 1930 (Praça Comendador Quintino, esquina com Rua Henrique Dias). Foto do Google, em julho de 2011.

Mas foi no ramo da construção civil que Santos Guido se destacou. Engenheiro e arquiteto autodidata, operário, marceneiro e dono de lojas de materiais de construção, Guido já era, no início da década de 1930, o mais renomado construtor da cidade. No triênio 1928-1930, mudanças no código de obras municipal haviam obrigado os proprietários a alterar as fachadas das edificações construídas defronte às ruas do centro. Saíam de cena as velhas casas coloniais, com os beirais dos telhados pendurados sobre as calçadas, para dar lugar às novas fachadas retas com platibandas decoradas. O historiador Hidelbrando Pontes atribui a Santos Guido “a introdução das ordens civis modernas” em nossa cidade: normas técnicas e urbanísticas que disciplinaram a construção civil.

Localização onde funcionou a serraria das Indústrias Santos Guido entre o início da década de 1930 e meados dos anos 1960. Trecho inicial da atual Avenida Odilon Fernandes.
Detalhe de planta da cidade elaborada por Gabriel Totti em 1956.

Em dezembro de 1934, o jornal Lavoura e Comércio dedicou uma matéria de uma página (escrita por um cronista que assinou apenas P. S.) sobre as empresas de Santos Guido. O construtor era dono de uma grande serraria – situada na baixada da atual avenida Dr. Odilon Fernandes, ao lado da praça da Concha Acústica – onde grandes toras de madeira de lei se transformavam em tábuas, caibros e vigas. Na esquina das ruas Martim Francisco e Henrique Dias, um elegante predinho em estilo “art déco” abrigava sua carpintaria e um depósito de materiais de construção. Na praça Rui Barbosa, quase defronte ao Paço Municipal, ficavam os escritórios. As empresas somavam uma centena de empregados e Santos Guido era o maior cliente da companhia de luz e força da cidade (o consumo só perdia para o da fábrica de tecidos, que dispunha de usina própria).

Matéria especial sobre Santos Guido, publicada na edição de 24/25 de 
dezembro de 1934 do jornal uberabense Lavoura e Comércio.

Perguntado sobre quantas casas havia construído até então, Santos Guido não soube responder. Dizia ele que ao menos um terço das casas do centro havia passado por suas mãos, na construção ou em reformas. E que nos dois terços restantes, certamente havia alguma madeira, cal ou cimento fornecido por suas lojas. Laços familiares ampliavam essa participação. Sua irmã, Rosina Guido, casou-se com outro importante empreiteiro italiano estabelecido em Uberaba: Miguel Laterza, um dos construtores da igreja de São Domingos.

Detalhe do caminhão das indústrias Santos Guido na Praça Rui Barbosa. Lavoura e Comércio, 24/12/1934

Santos Guido também foi, por décadas, o maior construtor de obras públicas do município e um inovador em diversos setores. Trouxe à cidade o primeiro caminhão pesado movido a óleo diesel (provavelmente um Fiat 642N italiano), introduziu um estilo de residências recuadas em relação à rua do tipo “bungalow” – um contraponto menos suntuoso aos antigos “palacetes” – e foi um dos entusiastas e construtores da primeira piscina pública de Uberaba: no clube da Associação Comercial, na rua Manoel Borges, inaugurada em janeiro de 1936.

Caminhão italiano pesado Fiat 642N fabricado no início dos anos 1930. Provavelmente, do mesmo modelo utilizado pelas indústrias Santos Guido, primeiro caminhão movido a óleo diesel de Uberaba.
Foto: Wikipedia

Um de seus filhos, João Guido, formou-se engenheiro na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. No final dos anos 1940, passou a dirigir a empresa – renomeada Santos Guido & Filhos – ao lado do pai. Duas décadas mais tarde, foi eleito prefeito municipal. Aliviado do cotidiano dos negócios, Santos Guido dedicou-se ao associativismo, à militância política e a obras de filantropia. Foi delegado local da Federação das Indústrias e presidente por vários mandatos do asilo Santo Antônio.

Embarque de gado zebu em um avião Curtiss C-46 no aeroporto de Uberaba em junho de 1948. Detalhe do caminhão das Indústrias Santos Guido & Filhos Ltda.
Foto de J. Schroden Jr.

“Santos Guido não tem seu nome ligado à história de Uberaba”, dizia P. S. na premonitória crônica de 1934. “Não venceu exércitos nem comandou legiões de eleitores. Mas fez mais do que isso. Fez casas para muita gente que hoje, metida dentro de quatro paredes confortáveis, nem sequer se lembra das mãos do artista que delas fez a planta, que as elevou e que sobre elas arranjou as telhas”. O construtor faleceu em 1982, pouco antes de completar 93 anos de idade. São raras as suas fotos e não consta que alguém tenha publicado sua biografia.

Palanque de recepção ao presidente Getúlio Vargas em maio de 1953, na praça Rui Barbosa. No canto direito superior, um detalhe dos escritórios das Indústrias Santos Guido no centro da cidade.
Foto do Arquivo Nacional.

(André Borges Lopes / uma primeira versão desse texto foi publicada na coluna "Binóculo Reverso" do Jornal de Uberaba em 24 de novembro de 2019. )

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