OS
39 DEGRAUS E A DAMA OCULTA
A
Caracterização Tipológica
Guido Bilharinho
OS
39 DEGRAUS E A DAMA OCULTA
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O conhecimento dos filmes Os 39
Degraus (The 39 Steps, Grã-Bretanha, 1935) e A Dama Oculta (The Lady Vanishes,
Grã-Bretanha, 1938), de Alfred Hitchcock (1899- 1980), realizados anteriormente
à sua transferência para os Estados Unidos, demonstra que o cineasta britânico nessa
fase (segunda metade da década de 1930), ou, pelo menos, nesses dois filmes,
está mais ou tão só para Agatha Christie do que para cinematografia consistente
e autoral.
Ambos
os filmes perdem-se em meio às peripécias, correrias e simulações de espionagem
internacional, uma das fortes características da época, vésperas da eclosão da
Segunda Guerra Mundial. Nesse mundo absurdo, mas, plenamente explicável e
explicado, no qual países lançam-se em fúria mortal contra seus vizinhos, a
espionagem é de suas facetas menos cruéis e perversas, conquanto também
frequentemente letal, embora restrita à esfera individual.
A estrutura fílmica e a linguagem
cinematográfica de Hitchcock nessas obras pautam-se pelo ritmo e conformação
dos incidentes e vicissitudes da espionagem. Seu clima, conteúdo e orientação
são os mesmos de alguns dos livros da citada escritora britânica nos quais
aborda o tema. São mesmas a leveza, a linearidade e a superficialidade
narrativas. Iguais os métodos e a atuação dos protagonistas. Semelhantes
algumas situações, em que pessoas estranhas às escaramuças da espionagem e
contra-espionagem internacional nelas envolvem-se por força das circunstâncias
e acabam por ter atuação capital no desenvolvimento dos fatos e solução dos
impasses. Análogas, também, as próprias
resoluções dos affairres ficcionalmente montados.
Cumpre,
no caso, apenas verificar se essas obras de Agatha Christie são anteriores,
concomitantes ou posteriores a tais filmes. Na última hipótese ela seria a
influenciável. Contudo, pelo menos dois de seus livros transcorridos em trens -
como no caso de A Dama Oculta - são bem anteriores ao filme, a exemplo de O
Mistério do Trem Azul (1928) e Assassinato no Expresso Oriente (1933), simples,
e, às vezes, agradáveis leituras digestivas e recreativas, próprias apenas para
passatempo de férias. De qualquer modo, são essas a ambiência e a prática da
época, das quais qualquer escritor tinha conhecimento e acesso na Grã-Bretanha,
então ainda um dos centros decisórios do planeta.
Todavia,
o aspecto que menos interessa sob o ponto de vista fílmico, aliás, não
interessa nada, é esse da influência e da interinfluência, assunto à parte.
O que importa no caso - e, por isso, a
questão vem a pelo - é a circunstância da ocorrência da analogia apontada e o
que isso representa.
Ora,
ao trazer a obra de Agatha Christie à colação está-se querendo dizer
simplesmente que esses filmes de Hitchcock, sob o prisma artístico, não
existem, do mesmo modo que a bibliografia de Christie está fora da literatura.
Esse, pois, o significado da comparação, visivelmente desvantajosa para o
cineasta que Hitchcock tornou-se depois.
Contudo, por que, mesmo assim, é
convidado a dirigir filmes nos Estados Unidos? Não só pela finalidade comercial
do convite, mas, também, pelas qualidades demonstradas nesses e em outros
filmes da época. Que vão desde inteligência sagaz e brilhante à segurança e
flexibilidade direcionais, além de paulatino e crescente domínio da
estruturação fílmica e dos elementos da linguagem cinematográfica. E tanto é
claro esse work in progress, que é nítida sua maior desenvoltura em A Dama
Oculta do que em Os 39 Degraus, feito três anos antes.
Ambos são filmes de ritmo célere e
ação contínua, principalmente A Dama Oculta. Conquanto comerciais e destituídos
em geral de virtualidade artística, apresentam - sempre o último em grau mais
elevado - exemplos dos atributos apontados.
Em
A Dama Oculta, as figuras ridículas dos dois cidadãos britânicos - que se
comprazem em considerar-se súditos - com toda sua gestuação, postura e
atitudes, constituem crítica mordaz e ferina de aspectos da índole dos
habitantes do reino, notadamente de sua extremada formalidade, aparente
seriedade e importância quase transcendental que dão a seus arraigados e
tradicionais costumes, concentrando, no caso, em simples jogo de críquete sua
máxima preocupação e atenção no momento.
Além
da perspicácia e pertinência da crítica, o modo de materializar e conduzir essa
manifestação de uma das infindáveis anomalias humanas revela a grande
capacidade de Hitchcock, que não poderia passar despercebida, como, aliás, não
passou.
Mas,
não só. O indivíduo que viaja incógnito com a amante denota comportamento
coerente com seu caráter oportunista. É outra personagem também brilhantemente
delineada e conduzida, sob forte inspiração dos estudos da psicologia humana
que, a partir da Viena de Freud, já se iam disseminando pelo mundo até atingir
e ter grande voga nos Estados Unidos na década de 1940, onde lá estava o mesmo
Hitchcock para lhe dar respaldo e ainda maior divulgação no filme Quando Fala o
Coração (Spellbound, 1945). Além desses, há ainda, o passageiro italiano como
outro adequado exemplo biotipológico.
Já os demais figurantes, em que se
incluem os próprios protagonistas, não apresentam tão aguda personalização da
observação caracterológica e psicológica como os anteriormente apontados,
simplesmente antológicos.
Algo
inexistente, pelo menos em seus melhores filmes estadunidenses, exceto,
evidentemente, na comédia macabra O Terceiro Tiro (The Trouble With Harry,
1956), é o traço humorístico ocorrente em A Dama Oculta, responsável não só
pela exploração e exibição de particularidades insólitas ou jocosas de algumas
personagens, como pela articulação mesma de situações cômicas, como a luta do
protagonista com o mágico italiano no vagão de cargas do trem.
Nesse
filme e no comboio que rápido o percorre tem-se, talvez pela primeira vez na
obra do cineasta, a focalização da paisagem através da ampla e envidraçada
janela de um trem, numa captação derivada de imposição da trama e ainda não
poetizada no alto nível estético ocorrente nos filmes estadunidenses
posteriores, Pacto Sinistro e Intriga Internacional.
Se o progresso de Hitchcock entre Os
39 Degraus e a A Dama Oculta (ou desaparecida, como se a denomina
originalmente), é nítido e crescente, seus futuros passos cinematográficos nos
Estados Unidos, para onde se dirige em 1940, o conduzem, após período
transicional de submissão a seu primeiro contrato de produção no país, à
elaboração de umas das filmografias mais brilhantes e instigantes do cinema,
conquanto destituída de inovações formais.
(do
livro O Cinema de Hitchcock e Woody Allen.
Uberaba,
Revista Dimensão Edições, 2017)
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Guido
Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de
poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de Literatura, Cinema e
História do Brasil e Regional, publicando atualmente no Facebook os livros
Obras-Primas do Cinema Brasileiro e Brasil: Cinco Séculos de História.