A GREVE
Engajamento e Arte
Guido
Bilharinho
A Greve |
Pudovkin, em seu clássico Argumento e Montagem no Cinema (São Paulo, Editora Iris, s/d, p. 136), e Henri Agel, em Le Cinéma (Paris, Casterman, 1955, p. 85), citam, como exemplo de montagem simbólica, as cenas finais do filme A Greve (Stachka, U.R.S.S., 1924), de Sergei Eisenstein (1898-1948).
Contudo, sob esse aspecto e essa
pretensão, o cineasta russo não utiliza adequadamente a ideia. Pretendendo
paralelizar e comparar a matança dos grevistas com a dos bois no matadouro, o
apropriado seria mostrar, ao invés da morte de um boi e seu descarnamento
alternado com o assassínio em massa dos grevistas, a queda de um boi após outro
com idêntico revezamento. O efeito seria bem maior, já que a eficácia
decorreria da sucessão, sincopada e sincrônica, da queda dos operários sob as
balas assassinas com a derrubada de bois sob o guante do magarefe, pontuando-se
o final com as centenas de cadáveres de operários de um lado e os corpos dos bois
mortos de outro. O símile, no caso, é o tiro nuns e os golpes noutros com suas
consequentes quedas ao solo. O descarnamento do boi, por demorado, não é
impactante e nem estabelece analogia com os tiros e a queda dos operários,
tendo função ou efeito contrário ao pretendido.
Todavia, esse primeiro filme de
Eisenstein já é obra do gênio, que, de filme a filme, só faz consolidar-se e
aprimorar-se.
A fotografia, os enquadramentos e
angulações, a seleção de fatos da realidade cotidiana dos operários, o enfoque
de pequenos animais e aves, o ritmo da imagem e a direção e interpretação dos
atores formam ordenado encadeamento de cenas e sequências, dispensando até
mesmo os letreiros que, desnecessariamente, funcionam, no caso, como títulos de
capítulos, ou, às vezes, simples legendas.
Por outro lado, não se pode negar que
preside a realização do filme orientação maniqueísta imposta pelas
circunstâncias de tempo e lugar. No caso, os operários vitimados são bons,
puros. Os empresários maus, cúpidos e cheios de defeitos. Já o extremismo
oposto, que domina as mentalidades e a visão da vida destes últimos, julga-os
dinâmicos, trabalhadores, inteligentes e, por isso, ricos, enquanto que os
operários são e continuam a ser operários por faltos de inteligência e, quando não,
por pura malandragem. Ambas, visões unilaterais e distorcidas da realidade,
que, todavia, não encobrem e nem disfarçam o mecanismo da exploração e
apropriação do trabalho alheio.
No mais, tudo leva a crer que um dos
objetivos de Eisenstein é, paralelamente a mostrar e denunciar a exploração
capitalista, incentivar a greve e a luta contra essa exploração. Contudo, além
do filme não contribuir para isso, é-lhe, ao contrário, poderoso antídoto, já
que a amostragem das consequências da greve (fome, desespero, assassínio em
massa de trabalhadores), redunda no amedrontamento do operariado.
É certo, porém, que a A Greve é realizado a partir da
realidade nacional soviética de então, no sentido de mostrar a seus operários a
exploração e a violência capitalistas, reforçando, assim, o regime. Constitui,
pois, nesse sentido, obra engajada. Como, a seu tempo, os grandes afrescos das
igrejas e a música sacra. Mas, como inúmeros desses afrescos e dessa música,
esse filme também é artisticamente realizado, submetendo a mensagem à forma,
sem o que nem configuraria arte. Por isso, uns e outros sobressaem e perduram
muito além de seu condicionamento, projetando-se pelos séculos afora, como
obras, certamente, perenes.
(do livro Clássicos do Cinema Mudo. Uberaba,
Instituto Triangulino
de Cultura, 2003)
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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista
internacional de poesia Dimensão de
1980 a 2000 (https://revistadepoesiadimensao.blogspot.com.br) e autor de
livros de literatura, cinema e história do Brasil e regional, publicando desde
setembro último um livro por mês no blog (https://revistadepoesiadimensao.blogspot.com.br)