Mostrando postagens com marcador Do que eu falo quando eu falo de bebidas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Do que eu falo quando eu falo de bebidas. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Do que eu falo quando eu falo de bebidas

Pirajuba vivia de cara amarrada, feia. E balbuciava. Resmungava aquelas frases incompreensíveis, que eram mais incompreensíveis do que as frases do Meio Quilo – de quem se entendia apenas a expressão: Rolling Stones, yeah! Raquíticos, o diálogo entre ambos era o que se podia chamar de uma conversa de peso. Mas peso pesado era o Eduardo Bundinha que, além do debate político, carregava um protuberante background musical com infindáveis sugestões para o Moacir. O saudoso Moca, por sua vez, sempre irreversível. Bundinha dizia: Paulo Diniz, ele colocava Tim Maia – ao vivo; Premeditando o Breque, ele colocava Tim Maia – ao vivo; João Donato, ele colocava Tim Maia – ao vivo. Então, o Tonho intervia: Dave Brubeck, pô! E o Moca se prontificava imediato, afinal Take Five era Take Five. Quando o argentino Jorge Luis Borges escreveu “Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca”, provavelmente sonhava com as estantes de livros do Tonho – que eram guardados na casa incrustrada na vilinha da Rua Artur Machado. Se discutir literatura com o Tonho configurava ato camicase, imagina só discutir jazz. Tinha que ter muita paciência, a mesma que os irmãos Luciano e Léo Tupaciguara tiveram para ler parte daquela coleção. O Nãna estava pouco se lixando para essas obras, preferia a moda de viola, uma caixa de cerveja, um pouco de uísque e algumas doses de Campari. Era o momento em que ele olhava para a mesa na ponta do balcão e percebia que o queixo do pai do Serginho e do Saulinho entortava proporcional aos copos entortados. Aí, Nãna virava poeta. Não mais – é óbvio – do que o Ismael Magrelo ao apear daquela motocicleta DT 180, barulhenta e desagradável, declamar o tal “Boneco humano, palhaço de pano...” e revelar o seu destino final: o Pai! Nessas horas, o Tonhizé evocava Noel Rosa e comentava com o Leão o resultado do futebol. No início da década de 1990, havia muito que se falar mal da amarelinha. Até que por uma questão incontinente do tempo chegava ao fim do ano e com a data o José Maurício Bunazar. O mesmo Zé que depois do 72° Hollywood continuava a se questionar: como é que pode no meio de tanto alienígena surgir um Francisco Petrônio, aprendiz glorioso de coxinheiro? Dona Marcelina, na sua habitual diplomacia, negociava para que a resposta ficasse para outro dia, uma vez que já se passavam das 22 horas e era 24 de dezembro. Enquanto isso, Mamute rangia os dentes e o Josino se esforçava para abrir os olhos. Com Itamar Assumpção nas caixas de som, ninguém queria se despedir, tomar a saideira ou ir embora para a casa. Foi o eterno Yassú que puxou definitivo a fila. Antes, a Rô analisava, Aninha gargalhava. Por fim, trôpegos, todos se levantaram e, sem mais nem menos, ou aviso prévio, as portas da Tristão de Castro esquina com a Raul Terra foram cerradas. Nesse dia, o Pirajuba foi o último a ser atendido e saiu de lá exatamente do mesmo jeito que entrou: com fé no bicho, de cara amarrada, feia e balbuciando aquelas frases incompreensíveis.

Luciano Bitencourt
Filósofo e escritor

 14/09/2017