Éramos um grupo de devotos de São Cono, que, como todos sabem, é o santo protetor dos jogadores. Como bons devotos, nos reuníamos toda segunda feira no templo erigido nos fundos da minha casa, onde realizávamos o nosso culto.
Havia ali, e há até hoje, um fogão à lenha, pilotado por mim e de onde saía um frango caipira, um arroz carreteiro, uma costelinha com canjiquinha, etc.
Ao contrário de outros cultos, o nosso era acompanhado de muita cerveja, uma cachacinha de “guia” e qualquer bebida alcoólica que algum fiel levasse.
Para quem não é familiarizado com esse importante santo da igreja católica, transcrevo aqui a oração de São Cono:
Senhor, eu não quero pecar te pedindo sorte no azar, mas quando você quer pode nos atender através de São Cono uma mão para ganhar uma aposta: se é dia 3 porque é o dia da sua morte; se é 7 e no 07 porque é o número que somam as letras do nome de São Cono; se é 18 é pela idade em que faleceu; se é 11 porque é o número da sua Igreja na Flórida (Uruguai); se é 60 é porque quando trouxeram sua imagem da Itália numa das suas sandálias estava esse número; se é 72 é porque é o final do ano em que foi canonizado em Roma; se é 85 é o final do ano em que se inaugurou sua Igreja.
Senhor, se sou merecedor da sua graça, através de São Cono conceda-me. Amém”
O “altar” que foi confeccionado pelo artista Oripinho, vulgo “bicudinho”, em razão do seu mau humor constante, consistia em uma mesa redonda que abrigava com folga doze fiéis que das 20h até por volta da meia noite, rendiam homenagens ao já citado santo.
É claro que estamos falando do jogo de Cacheta onde os amigos, muito fraternalmente, tentavam tomar o dinheiro uns dos outros.
Os mais assíduos eram: Vandinho; Carijó; Marcão; Brás; Oripim, já citado; esse que vos relata, Simeão; Márcio; Furiati, Godoy; Sakamoto; Adalberto Namura e outros que me escapa os nomes agora.
Entre os eventuais tinha o Moura Miranda, que já estava se tornando habituée das reuniões.
Mas o Moura, apesar de cartear como um príncipe, tinha um azar danado. Parece que o Santo não lhe escutava as preces, ou achava que outros eram mais merecedores que ele, (vai entender esses santos).
Juntava-se a isso as imprecações que o Moura não parava de proferir e estava formada a “tempestade perfeita”.
Numa segunda feira, o jogo seria pif-paf (uma variação da cacheta) e logo na primeira mão, o nosso glorioso Moura sai com dois jogos prontos e um par-e-liga, ou seja, estava “na boa”. Como o pif paf não tem curinga, esse é uma grande mão e vence na maioria das vezes. Para melhorar, cinco jogadores entram na aposta e a mesa fica coalhada de fichas.
Infelizmente, para ele e felizmente para o Zé Coquim, que tinha acompanhado com dois pares e uma “gaveta”, faz boa justamente na gaveta e para o desespero do Moura, depois de muitos descartes, bate com uma dama de copas que dobrou no par do Moura.
Foi a gota d’agua. O Moura, muito bravo, chinga o santo, chinga o Zé coco, maldiz a sua sorte, e, cúmulo da indignação, taca (essa é a melhor expressão que retrata o feito) o baralho na mesa, se levanta e dispara:
-Nunca mais jogo essa merda, que me dê uma doença ruim na mão se eu jogar de novo!
Disse isso e foi embora pisando duro, sem comer e sem dar ouvidos aos amigos que tentavam dissuadi-lo.
Retomada a normalidade do jogo, foi instituído um ”bolão” para saber se o Moura cumpriria a promessa. Opiniões dividas, eu apostei e fui acompanhado por mais cinco de que ele não voltaria mais.
Na semana seguinte, seguindo o protocolo, liguei chamando e laconicamente, recusou. Na outra semana a mesma coisa, bem como na seguinte.
Foi estabelecido então, para os efeitos do bolão, que o prazo seria semana seguinte. Se ele não voltasse, seria decretado a vacância da vaga e outro jogador seria colocado no lugar dele.
Na segunda liguei e ele nem atendeu o telefone!
-Ganhei o bolão, pensei com meus botões.
O menu daquela segunda era costelinha de porco e para surpresa geral, lá pelas 21:00h (que era mais ou menos a hora que saía o rango) surge o Moura, meio que desconfiado, meio que sem graça, parecendo cachorro que peidou na igreja.
-Noite!
- Baum? Respondemos.
O Moura rodeou a mesa, foi nas panelas e antes que alguém perguntasse, disse:
- Passei só prá comer essa costelinha. Disse isso e se serviu antes de todos.
O jogo pausou e todos fomos comer.
Finda a refeição, o jogo retomou e o Carijó que havia apostado que ele voltaria ao jogo começou a pressionar o Moura para ele jogar.
O Moura bisbilhotando (sapeando) o jogo, resistia heroicamente. Porem a resistência foi esmorecendo e o Carijó percebendo que ele precisava de um empurrãozinho sai com essa:
- Ô Godoy, tá sabendo do tratamento novo no Hélio Angotti?
- Sei não, responde o Godoy
- Bomba de cobalto! Cura qualquer doença ruim que der nas mãos.
O Moura, prestando atenção na conversa e já com coceira na mão de vontade de cartear, puxa uma cadeira e fala pra mim que distribuía as cartas:
-Que se dane (a palavra foi outra)! Me dá as cartas!
Parece que o santo não cobrou a promessa do Moura, que continuou com seu azar e jogando como um príncipe.