Se algo puder dar errado, dará.
No dia-a-dia da lotérica, sempre acontecia de um cliente vendo o resultado, dizer que aqueles eram os seus números, mas que esquecera de jogar; que a mulher não o deixou jogar; que trocou os números na última hora; que jogava aqueles números toda semana e parou exatamente naquele sorteio; enfim, o repertório de lamúrias era grande.
Eu particularmente não acreditava em nada daquilo, mas como um bom vendedor de ilusões (como o amigo Tharsis me chama), lamuriava junto com o cliente, lamentava a sua (dele) má sorte e tascava sempre o bordão dos tempos do meu pai: “Quem não arrisca, não petisca, galinha morta não belisca, quem não morre não vê Deus!”
Parênteses para esse bordão: meu pai escutava isso na praça da Sé em São Paulo lá pelos idos de 1960 quando o comércio de bilhetes de tiras era o “Ó do borogodó” e a praça da Sé funcionava como uma bolsa de bilhetes onde o Brasil inteiro ia buscá-los para revender nas suas cidades. Para se ter uma ideia do quanto era concorrido esse tipo de sorteio, meu pai colocava um rádio de válvulas (que era ligado bem antes, dando tempo para que as válvulas esquentassem) na porta da loteria onde os apostadores acompanhavam em “ondas curtas” o resultado que era transmitido ao vivo das dependências da CAIXA.
A frente da loteria ficava lotada de apostadores, ganhando de longe da aglomeração diária na frente do saudoso Lavoura e Comércio onde os transeuntes se juntavam para ler as manchetes das notícias que sairiam à tarde.
Voltando à história: era eu o responsável por fazer os jogos dos clientes que repetiam toda semana os mesmos números. Como não existia ainda a teimosinha, meu trabalho era transcrever nos volantes os jogos dos clientes que ficavam no “caderno de jogos”.
Não mencionei o ano do acontecido, mas decorria o ano de 1987 no auge do governo Sarney, onde a inflação galopava e os aumentos no preço dos jogos eram da ordem de 80 a 100% a cada seis, sete meses.
Quando o aumento era anunciado, eu ligava antes para cada um dos clientes para saber se podia repetir os jogos com o preço novo.
Um desses clientes era o Sr. João Pedrosa, eletricista e pai da advogada Jussara Pedrosa (nem sei se ela sabe desse caso), que morou certa época na casa nos fundos da nossa, na rua Sete de Setembro. O jogo dele era, me recordo bem e ainda guardo os recibos, a LOTO, que mais à frente se modernizou e transformou-se na QUINA tal qual a conhecemos até hoje.
O jogo do seu João se consistia em 26 apostas que custavam, no preço antigo, a bagatela de CZ$300,00 (reparem a moeda da época, cruzados).
Em um desses aumentos, liguei para ele informando que o jogo passaria a custar a partir do próximo concurso o valor de CZ$ 583,00 e ele depois de muito reclamar do novo preço, e de lançar impropérios ao governo, me autorizou a repeti-lo.
Na terça feira, ele foi buscar o jogo. Pagou, já com o preço novo, conferiu com o resultado (corria às segundas), pensou um pouco, e me disse que a partir do próximo concurso faria só a metade dos jogos, pois estava ficando caro para ele. Perguntei quais jogos ele queria que repetisse e ele me pediu o caderno e riscou metade das apostas.
- Tira esses que eu risquei e repete o resto. Disse ele.
- Olha que isso não vai dar certo seu João, repliquei e já tentando dissuadi-lo argumentei, procurando provocar nele um medo de ver um bilhete seu premiado e não jogado:
- Olha que pode sair o prêmio nesses jogos que o senhor tirar, hein...
Tentei de todas as formas possíveis. Citei até a 13ª Lei de Murphy (“quando o pão cai, cai sempre com a manteiga prá baixo”), “e na terra” completou magistralmente Adoniram Barbosa o aforismo:
Porem ele ficou irredutível.
- Ô Marcelo, ponderou ele; acompanho esse jogo tem mais de três anos e só fiz terno (acerto de três dezenas, com premiação pequena) até hoje.
Desisti então da empreitada e o jogo foi feito do jeito que ele pediu para a semana vindoura e que seria o concurso Nº 423 do dia 01/06/1987.
Novamente, na terça feira seguinte ele apareceu e me chamou para pegar o jogo.
Pelo seu tom de voz e pela absoluta palidez que ele estampava no rosto, senti que havia algo errado com ele e perguntei:
- Que foi seu João?
- Me mostra o caderno para eu ver que jogos eu risquei, pois no meu jogo original eu acertei as cinco dezenas!
Como o prêmio havia acumulado, de imediato deduzi que ele havia riscado a aposta vencedora. Não falei nada e mostrei o caderno para ele, temendo que ele tivesse um enfarte assim que visse os jogos riscados. Ele pegou o caderno, deu uma olhada rápida, deu uma limpada nos olhos, olhou novamente, agora mais demoradamente, certificando-se de não ter visto errado, ficou mais pálido ainda, coçou a cabeça por uns eternos 20 segundos, me devolveu o caderno fechado e saiu sem falar um “a” e sem enfartar, graças a Deus!.
Abri caderno novamente só para conferir qual foi a aposta riscada por ele e era um jogo de 7 dezenas (21 25 32 34 40 93 94).
O resultado oficial do concurso 423 trouxe as seguintes dezenas sorteadas: 21 25 32 93 94.
Foi realmente uma pena pois o prêmio em dinheiro de hoje seria, nos meus cálculos, uns 5 milhões de reais.
O seu João continuou a repetir seu jogo comigo por mais um tempo, mas a sorte para ele sempre foi tirana. Só bateu à sua porta uma vez.
(Marcelo Caparelli)