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quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

CAROLINA MARIA DE JESUS – A INTELECTUAL DO MORRO A ESCRITORA CAROLINA MARIA DE JESUS

 Carolina Maria de Jesus


Mais de quatro décadas antes de livros como os da série Falcão, de MV Bill, ou de obras sobre a realidade das favelas escritas por gente de fora dos morros, como Carandiru e Abusado, se tornarem sucesso nas livrarias, uma moradora de favela se destacou como escritora e intelectual, num tempo em que a cultura das favelas não era ainda manipulada pela mass media.
Ela nasceu em Sacramento, em Minas Gerais, em 14 de março de 1914. Sua família extremamente pobre contava ainda com outros sete irmãos. Na década de 30 se mudou para São Paulo para arrumar trabalho e, morando na favela do Canindé, que ficava às margens do Rio Tietê e hoje não existe mais, sustentava três filhos trabalhando como catadora de papel. Certa vez, no meio de um lixo, Carolina encontrou um caderno velho, sem coisa alguma escrita e com folhas meio soltas, e pensou em registrar suas memórias em forma de diário.
Por sorte, Carolina foi descoberta em 1958 por um repórter da Folha da Noite (um dos três jornais que, mais tarde, se fundiram e viraram a Folha de São Paulo), Audálio Dantas (ex-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas e atual vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa), durante uma reportagem na favela do Canindé.
O SUCESSO DE CAROLINA MARIA DE JESUS CHAMOU A ATENÇÃO DE INTELECTUAIS COMO A ESCRITORA CLARICE LISPECTOR.
Audálio Dantas prometeu a Carolina que iria datilografar os manuscritos no diário. Com algumas revisões, até porque a língua culta exercia grande influência na época (e mesmo assim, a simplicidade narrativa da obra foi integralmente mantida), Audálio, já contratado, em 1959, como jornalista da revista O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand, publica na revista alguns trechos do diário de Carolina, incluindo fotos tiradas com os manuscritos.
Mas foi somente em 1960 que o trabalho foi publicado, com o título de Quarto de Despejo. 600 exemplares foram vendidos só na noite de lançamento, e, no final de 1960, as vendas chegaram a 100 mil exemplares. Intelectuais como a escritora Clarice Lispector foram prestigiar pessoalmente a autora.
Com o sucesso, Carolina Maria de Jesus viajou pelo mundo. Sua obra foi traduzida para 29 idiomas e a edição italiana ganhou prefácio do escritor Alberto Moravia. Uma peça de teatro foi adaptada por Edi Lima e encenada no Teatro Nídia Líci, em São Paulo. Também houve uma adaptação da mesma obra em telefilme, pela Televisão Alemã, utilizando a própria Carolina de Jesus como protagonista. A obra, cujo título, em português, é Despertar de Um Sonho, é até hje inédito no Brasil.
No entanto, a obra Quarto de Despejo e a própria expressão da escritora nos seus depoimentos, mostram a dura realidade das favelas. A obra não tem cunho ideológico e as exposições e opiniões da autora deixavam tanto a esquerda quanto a direita em situação incômoda. O livro de 1960 tem narrativa monótona, e seus dados pouco variavam no decorrer do tempo, o que dá um tom de amarga atualidade na obra. Um trecho do livro dá a noção da narrativa simples e deste propósito de denunciar a miséria e o descaso da sociedade de forma crua e sem disfarces:
1 de julho. Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente. (…) Quando passei perto da fabrica vi varios tomates. Ia pegar quando vi o gerente. Não aproximei porque ele não gosta que pega. Quando descarregam os caminhões os tomates caem no solo e quando os caminhões saem esmaga-os. Mas a humanidade é assim. Prefere vê estragar do que deixar seus semelhantes aproveitar.
As declarações causaram muita polêmica para muita gente, irritando até mesmo o governador da Guanabara, jornalista Carlos Lacerda, certa vez, e as más línguas, injustamente, tratavam a escritora como se ela tivesse um ataque de estrelismo. Nessa época, com o Brasil começando uma ditadura militar, Carolina foi aos poucos injustiçada e caiu num desmerecido esquecimento, diante da revolta desmedida de setores da opinião pública.
Carolina ainda publicou Pedaços de Fome, em 1963, pela Editora Áquila, e em 1965 publicou Provérbios. Em 1977, último ano de sua vida, foi entrevistada por jornalistas franceses. Na ocasião ela entregou os manuscritos de suas memórias biográficas. A escritora faleceu em 13 de fevereiro do mesmo ano, tendo as anotações biográficas sobre sua infância e adolescência publicadas em livro na França e Espanha, em 1982. Só em 1986 esse livro seria lançado no Brasil, com o título de Diário de Bitita.
Carolina Maria de Jesus foi uma das duas únicas brasileiras que foram incluídas na Antologia de Escritoras Negras, publicada em 1980 pela Random House, em Nova Iorque. Seu nome também foi incluído no Dicionário Mundial de Mulheres Notáveis, publicado em Lisboa por Lello & Irmão.