“Hospital
do Fogo Selvagem”
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A
cidade de Uberaba, além de sua beleza e prosperidade, abriga, em seu seio,
importantes personagens do movimento espírita brasileiro. Uma delas, que
trabalhou ao lado de Chico Xavier, é Dona Aparecida Conceição Ferreira, que se
projetou nacionalmente pela
Fundação
do “Hospital do Fogo Selvagem”, especializado no tratamento dos portadores do
“Pênfigo Foliáceo”, uma doença cujos sintomas se assemelham a labaredas que
percorrem o corpo e deixam na pele verdadeiras marcas de queimadura.
“Dona
Cida” começou esse trabalho no ano de 1957, quando trabalhava como enfermeira
no Isolamento da Santa Casa de Uberaba. Como o tratamento do Pênfigo era
difícil e dispendioso, o hospital acabou por suprimi-lo. A abnegada servidora
de Jesus não titubeou: levou os doentes para a sua própria casa.
Pedindo
esmolas nas vias públicas e recorrendo aos meios de comunicação, sobretudo com
a ajuda dos jornalistas Moacir Jorge e Saulo Gomes, este, através da extinta TV
Tupi, e contando com o irrestrito apoio de Chico Xavier, Dona Cida ergueu o
grande complexo hospitalar destinado ao tratamento da insidiosa enfermidade.
Depois,
com a alteração dos estatutos surgiu o “Lar da Caridade”, que chegou a abrigar
mais de trezentos desamparados ao mesmo tempo.
Embora
conhecesse Chico Xavier, e dele recebesse ajuda desde o início, tornou-se
espírita somente em 1964. Foi o Chico quem a incentivou a fundar o Centro
Espírita “Deus e Caridade”, onde ele comparecia para transmitir passes e
receber mensagens psicografadas, grande parte delas assinadas por Maria Dolores
e Jesus Gonçalves.
Em
visita à abençoada seareira, agraciada com o título de Cidadã Uberabense por
seus méritos, a “Folha Espírita” dela obteve longa entrevista, da qual destaca
alguns lances de sua maravilhosa existência.
As
origens: “De acordo com os assentamentos nasci em Igarapava, Estado de São
Paulo, filha de Maria Abadia de Almeida, às 4 horas da manhã, no dia 19 de maio
de 1917. Meus avós maternos foram Manoel Inocêncio Ferreira e Joaquina Angélica
de Jesus. Pelos registros tenho a idade de 82 anos, mas acredito que tenha 86.
Nunca vi meu pai e fui criada por avô e tio. Casei-me em Igarapava, no dia 14
de junho de 1934, com Clarimundo Emídio Martins. Lá fiquei até a idade de 36
anos, onde tive meus cinco filhos. De Igarapava fui para Nova Ponte, onde
exerci o magistério na zona rural.”
Em
Uberaba: “De Nova Ponte, vim para Uberaba, onde fiz de tudo para manter minha
família. Até limpeza de cisternas, porque quando cheguei na chácara onde fui
morar não havia o que comer. Então, saía limpando cisternas. Eu descia no fundo
dos poços, e eles puxavam o barro. Depois, me dediquei à horta. Os médicos da
Beneficência Portuguesa vinham comprar as verduras e com isso não precisava
sair vendendo.”
Enfermeira:
“O dono da chácara foi candidato a Prefeito e perdeu a eleição. Dizia ele que
gostava do meu trabalho, mas não daqueles que vinham à minha casa. Verdade seja
dita, eu não trabalhei na campanha dele. E eu lhe falava: “Quem vem na minha
casa é melhor que eu”, e procurei um jeito de sair de lá. Foi uma cabeçada,
sofri bastante. Certo dia, o Dr. Jorge me convidou para trabalhar no hospital.
Relutei muito, porque o quadro que eu presenciei no Isolamento era terrível:
doentes com tuberculose, tétano, febre amarela… Mas acabei aceitando porque a
oferta ia subindo, subindo… Afinal, me oferecerem três mil e trezentos,
enquanto meu marido ganhava cento e oitenta.”
Problemas:
“Eu trabalhava no hospital havia dois anos e alguns meses. Venceu o mandato
daquela diretoria, e entrou outra. A eleição foi dia 4, e dia 6 eles tomaram
posse. Os novos diretores parece que tinham alguma rixa com nosso médico, que
era irmão do Pedro Aleixo e partidário da UDN. A turma que ganhou era do PTB.
Falaram para mim: “Olha, hoje não tem almoço para os doentes, pode mandar todos
pra casa”. “Como?” , eu disse, “eles não têm dinheiro, estão ruins.” “Ordem
dada, ordem executada”, replicaram. Ou seja, não havia apelação, os doentes
estavam na rua.”
Em
busca de socorro: “Eu procurava consolar os doentes dizendo-lhes: “Não chorem,
não, nós vamos fazer uma passeata e o povo vai nos ajudar” . Fui a uma rádio
pediram-me para “refrescar a cabeça”, noutra, a mesma coisa, no jornal, igual.
Eu não sabia que estava brigando com a nata da cidade: Prefeito, Escola de
Medicina, Saúde Pública. Me mandaram pra casa e fui muito triste, nervosa,
matutando como fazer. Eram doze doentes. Fomos para minha casa.”
Momento
de decisão: “Em casa, um de meus filhos me disse: “A senhora escolhe, ou nós ou
os doentes”. Não vacilei e respondi: “Hoje, fico com os doentes, porque eles
têm Deus e eu por eles, vocês estão crescidos e vão se virar”. Chamei todos
eles para dentro, e entraram chorando. E aí os vizinhos me davam um caixote; o
outro, um colchão; outro uma tábua; e eu agasalhei os doze. Fui fazer o almoço,
eram três ou quatro horas da tarde. A gente estava só com o café da manhã.
Enquanto fazia comida, gritava para minhas filhas esquentarem água para eles
tomarem banho na lata de querosene e assim permanecemos ali por dois dias.”
Asilo
São Vicente de Paulo: “No fim de dois dias, chegaram os diretores da Escola de
Medicina e da Saúde Pública para ver as condições, que eram precárias. E aí
arrumaram o Asilo São Vicente de Paulo, para que ficássemos dez dias porque, no
final de dez dias, como prometiam, iriam arrumar alguma coisa melhor. Foram dez
anos, nunca mais vi eles. Foi o tempo que eu levei para construir isso aqui,
com a graça de Deus e a ajuda do povo.”
Preconceitos:
“Havia muito preconceito para com os doentes. Eu saía para pedir esmolas com
três deles. Muita gente nos via e descia da calçada. Eu falava: “Não saiam não,
porque se vocês saírem, apanham”. Se nós entrávamos nos ônibus, o pessoal
descia. Fomos pedir em uma casa daqui, cuja dona se dizia espírita e os meninos
tocaram no portão. Antes que subíssemos, ela mandou passar álcool no portão
para desinfetar. A doença do pênfigo é triste, é horrorosa, o doente na
primeira fase é um pedaço de carne podre. E o povo tinha medo, porque ninguém
conhecia, nós vencemos. Para fazer esta casa aqui foi uma luta, tantos foram os
abaixo-assinados para que não fosse feita…”
Oito
dias no xadrez: “Aqui não tem um grão de areia dado pela Prefeitura, nem pelo
Estado ou a União. Foi o povo quem me ajudou. O pessoal espírita daqui fazia a
campanha “Auta de Souza” e traziam as coisas para mim. Mas não dava para manter
a casa, porque no final de um mês eu tinha trinta e cinco doentes. Fui para São
Paulo e ficava no Viaduto do Chá, em frente da Light. Punha um lençol, as
meninas segurando, e eu com um sino dizia: “Me dêem uma esmola pelo amor de
Deus, para os doentes do Fogo Selvagem de Uberaba”. E aí o povo ia jogando
níqueis. Na época, foram dois vereadores daqui passear em São Paulo: um advogado
e um médico. Achando que eu estava desmoralizando Uberaba, fizeram Ofícios para
o Chateaubriand (*) e para a Delegacia. Fiquei oito dias no xadrez, até que uma
advogada, Doutora Izolda, me tirou. Quem mandou ela me tirar, não sei até hoje,
pois ela já morreu.”
No
Palácio dos Campos Elíseos com Scheilla: “Um dia, eu e o Lauro (*) estávamos
andando na Avenida Rio Branco, nos Campos Elíseos, e eu o convidei para entrar.
Atônito, ele disse: “Você está doida, nós estamos sujos, fedendo a suor, entrar
aí no palácio do governador?”. Mostrei as fotos dos doentes ao policial da
portaria, ele ficou muito revoltado e me mandou segui-lo. … Passamos por
saguões, escadas e tapetes vermelhos. Dona Leonor (*) estava conversando com um
senhor. Em outra poltrona, estava sentado Don Evaristo e na terceira, nós. Ela
acabou de conversar com os dois, e chegou nossa vez. Quando ela ia fazer menção
de se sentar eu disse: “A Scheilla quebrou um vidro de perfume”. Entre nós e a
Dona Leonor ficou igual neblina e aquele perfume sufocando. Precisamos procurar
ar. Quando melhorou, ela perguntou o que queríamos e lhe disse que pedia ajuda
para o Hospital do Pênfigo. Ela disse: “Eu não posso ajudar, porque a senhora
mora em Minas, e eu sou de São Paulo”. Mas acabou me dando uma máquina de
costura, duas peças de cretone e dez contos. Mas fiquei pensando: “O Chico não
está aqui, como é que veio aquele perfume?”
O
primeiro passe: “No mesmo dia em que estivemos com Dona Leonor, à noite, eu e o
Lauro fomos a um Centro Espírita, uma casa velha, com muita gente. Logo que
começou, o presidente da mesa falou: “A pessoa do fogo selvagem que estiver aí
faça o favor de se dirigir à mesa”. Não fui. Quando acabaram os trabalhos,
todos foram saindo, menos aqueles da mesa. O presidente tornou a falar sobre a
pessoa do “Fogo Selvagem”. Eu me apresentei, e ele pediu-me desculpas porque
não sabia quem eu era e falou que o “Mentor da Casa” tinha dito que era para eu
dar um passe na Presidente do Centro, que já fazia três meses estava entrevada.
Eu nunca tinha dado passe, mas agüentei firme. Subimos aquela escada de madeira
em caracol e lá chegamos. Ela se chamava Mafalda, uma portuguesa. Estava sob um
cortinado “chic”, a turma rodeou a cama dela, e me puseram frente-a-frente. Eu
iniciei a oração, senti algo estranho e pensei: “Nossa Senhora, agora vai sair
bobagens aqui”. Dei o passe e fomos embora. Dizem que em três dias ela andou.
Aí, eu falei: “Preciso ser Espírita, porque a coisa está me apertando. A
comida, ganhamos do povo espírita, agora a Scheilla me deu essa permissão, esse
passe”. Dona Mafalda me ajudou muito, fazia bingos, rifas, jantares, até quando
morreu de câncer.”
Chico
Xavier: “Tantos e tantos foram os episódios interessantes que pude vivenciar
com Chico Xavier. Certa vez, eu estava fazendo campanha em São Paulo, a
situação estava difícil, e aquele dia não estava bom para pedir esmolas. Estava
na Avenida Paulista, em frente da Televisão, amargurada, fazendo minha oração,
triste, porque não estava rendendo nada. De repente, eu olho e vejo o Chico na
outra calçada. Até que eu procurasse um lugar para passar e ir de encontro com
o Chico, cadê o Chico? Que Chico, nada… Mas, daquela hora em diante, as coisas
melhoraram para mim, desci a Brigadeiro e fui para o Anhangabaú, e ali a mina
nasceu…
Meu
primeiro encontro com o Chico foi quando eu tinha uma doente muito obsediada;
na época, eu dizia que ela estava doida. Fazia quinze dias que ela não dormia e
nem deixava ninguém dormir. O Chico tinha acabado de chegar aqui. Um acadêmico
de Medicina, Aldroaldo, me convidou para levar a doente ao Chico. Eu disse:
“Sou católica, não queria ser espírita, porque tinha comigo que para servir a
Deus não precisava mudar de seita, em qualquer delas se pode servir”. Então, o
Aldroaldo apareceu com uma “chimbica” junto com outro estudante. A doente
queria saltar pela janela, a colocamos no meio. Chegamos lá no Chico, o quarto
era pequeno e estava repleto de gente. O Chico estava de pé, escrevendo. Mas eu
não vi o Chico, eu vi o Castro Alves. Nem me lembrei que Castro Alves tinha
morrido. Falei: “Que Chico, que nada, é Castro Alves, com cabelo à ” la
garçon”, grisalho”. Por fim, eu disse: “Vamos embora, vamos embora”. Na volta,
a doente veio moderada, entrou dentro do carro sozinha e dormiu a noite toda…”
O
Espiritismo: “Eu detestava o Espiritismo. Só a partir de 1964 é que me
aproximei do Espiritismo, quando estava fazendo a campanha de tijolos para esta
casa. Como já disse, fiquei pensando, não é possível, o povo faz campanhas de
mantimentos e os trazem para mim, o povo me agrada, me dão dinheiro, a Scheilla
me aparece em São Paulo. Naquela noite, eu não dormi, matutando: “Eu vou lá na
mulher, nunca tinha dado passe na vida, me mandam dar passe, só virando
espírita”. E o Espiritismo não é brincadeira, é coisa muito séria, não se pode
brincar com o Espiritismo. Às vezes, você vai em um Centro pensando que vai
levar e você volta carregada. Eu não brinco”.
Uma
mensagem aos Espíritas: “Aos que buscam desenvolver algum trabalho, a minha
mensagem é de que tenham muito amor, muita sinceridade e que façam as coisas
para si e não para os outros verem. Porque a maioria faz as coisas para os
outros verem. E não importa o que os outros falam, porque todas as pessoas que
vão fazer a caridade levam o título de “ladrona”. Meu título era de ladrona.
Alguém foi perguntar para o Chico, porque todos diziam que eu estava roubando.
Porque quando eu comprava um terreno, diziam: “Comprou mais um terreno para o
filho”. Comprava outro, era a mesma coisa. Então, o Chico disse àqueles que
foram lhe falar: “Me digam onde ela roubou, que eu vou ajudar ela a roubar”. A
partir daí, o povo foi parando de falar que eu roubava.”
PUBLICADA
NA FOLHA ESPÍRITA, SÃO PAULO, SETEMBRO/99.
Entrevista
por Ismael Gobi
Foto: João Eurípedes Araújo