Na terra do zebu perdura, há muitos anos, um mito que diz:
“o zebu e suas dinastias castram e castrarão toda produção, bem como todas as
formas de criação e expressão artísticas, especialmente, aquelas que não lhe
prestarem culto, louvor ou homenagem”.
Sabemos que os mitos são mais que histórias mentirosas ou
absurdas contadas por pessoas ignorantes, na falta de explicações racionais. O
mito organiza, sedimenta e dá sentido ao modo de organização social e ao modo
de vida de uma determinada cultura (Lévi-Strauss). Assim, o mito tem a função
de educar para a vida em sociedade, porém mais do que isso, o mito traz lições
de sabedoria e propõe enigmas de superação. “Decifra-me ou te devoro”, dizia a
esfinge de pedra aos aventureiros desejantes do trono de Tebas, que foi vencida
pelo valente e sábio Édipo, por trágico destino, tornado rei parricida e
incestuoso.
Para crescer e atingir a maioridade esclarecida kantiana é
preciso enfrentar e superar medos e mitos que povoam a minoridade dependente.
Depois de enfrentar o boi da cara preta, Fábio Baroli se vê diante da moderna
esfinge e seu enigma: “Decifra-me ou devoro teu desejo de arte”, diz o mito da
terra do zebu. A resposta ao enigma que devorou tantos desejos se materializa
na série que ora se apresenta. O que Fábio Baroli descobriu e compreendeu é
que, para superar o mito, fazer arte na terra do zebu e fugir às castrações, é
preciso ir até a casa do caralho.
O termo “casa do caralho” não é (apenas) uma licenciosidade
indecente gratuita, é uma expressão popular para designar lugar distante e ermo
que não se sabe bem onde fica; expressão usada para dizer que algo está muito
longe, ou para onde alguém indesejável deveria ir, ou quando se diz que alguém
foi fazer algo e está demorando a voltar. E eis que em frente estamos
(enfrentamos) de um políptico do impensável, atraídos por um fogo esplêndido
terrível que paira acima dos acontecimentos e, ao mesmo tempo, se espalha pela
cena iluminando e sombreando os elementos, as personagens e as ações. Então,
quando os olhos percorrem a cena, somos atingidos pela ousadia combatente do
artista da Intifada, que escolheu como local da batalha um ícone da terra, um
patrimônio tombado que é uma quase-unanimidade entre as várias tribos e os
vários reinados.
O pátio da igreja São Domingos demarca a presença secular de
uma ordem milenar e testemunha a vida de gerações que por ali passam para
rezar, para manter a ordem, para pedir votos, para namorar, estudar, cantar,
fumar maconha, ou simplesmente admirar. Campo de batalha que já recebeu
fugitivos do regime militar, “Romeu e Julieta” com o grupo Galpão, Mundo Livre
S/A, Os Tribais, Movimento Desemboque, Ternos de Congada e Moçambique,
orquestras sinfônicas e companhias de dança.
Na cena esparramada pelo pátio, ritos e rituais giram em torno
de fogueiras e braseiros das comemorações e celebrações pelas dádivas do animal
de antigas linhagens sagradas, que veio lá da casa do caralho para encontrar
aqui a terra prometida de seus sacerdotes mercadores. Ao lado, num diálogo do
artista com a atualidade, uma batalha incendiária desencadeando ataques para
destruir símbolos do poder econômico compõe a cena num misto de continuidade e
ruptura, alternando tensões e alianças. Imponente, a construção neogótica de
pedras avermelhadas observa com gentileza, irradiando impecabilidade. Bonita
como jamais vista.
As labaredas crepitando do telhado ou no telhado da igreja
nos faz vacilar por um instante denunciando nosso apego, quando num lampejo nos
pegamos ponderando sobre a extensão da destruição e o que poderia ser salvo.
Mas, quando os olhos alcançam a luminosidade da tela, percebemos que existe
mistério neste fogo, e somos apanhados pelo seu encantamento. Então
compreendemos que é do fogo que se trata, onde tudo começa.
De onde vem este fogo que se eleva com vida própria e já não
sabemos dizer se vem do telhado, se queima o telhado ou se flutua impassível
como mensagem e mensageiro?
Fogo de beleza poética e sabedoria trágica que ilumina,
orienta e julga; das carruagens de Apolo, o deus oráculo das formas perfeitas,
que Prometeu foi até o Olimpo roubar para dar a vida ao homem. Princípio
primeiro de tudo que existe, a vida é fogo que arde gerada e mantida pela morte
do que queima, na harmonia dos contrários que governa o cosmos, como nos ensina
o longínquo Heráclito. Fogo que impulsiona o grande salto cultural da
humanidade do cru ao cozido, do qual é herdeira a tradição do zebu e os rituais
da carne. Fogo que vence muralhas e que revelou a Moisés o seu Deus.
À primeira vista, pensamos que o fogo vem dos coquetéis de
black blocks saídos das redes sociais e dos noticiários da TV. Mas, o dito
popular dá a resposta: “Ele foi buscar fogo lá na casa do caralho”.
Pelos matizes dessa iluminação, o olhar sem mácula da mão do
artista reveste a igreja São Domingos de uma dignidade imperceptível a olho nu,
e impossível às restaurações do patrimônio histórico. Dignidade serena de réu
confesso em paz com seus crimes e exultante em expiá-los, que, na iminência da
destruição, se revela aos que já estão cegos de tanto ver. A bicentenária
neogótica da terra do zebu se projeta da tela com a plasticidade do
renascimento da casa do caralho.
O que se apresenta, agora, no pátio da São Domingos é o
espetáculo da vida vivida entre a terra do zebu e a casa do caralho,
possibilitada, mediada e assistida pelo fogo que anuncia a queda. As chamas das
fogueiras que aquecem os acampamentos, as rodas de conversa e as cantorias, e o
calor dos braseiros que churrasqueiam a carne dos castrados para o abate
acendem as chamas e o calor dos coquetéis molotov que condensam o furor das
manifestações de protesto que tomam as ruas. Arma de combate dos que não têm
armas; poder de fogo dos que não têm poder.
Fábio Baroli se apropria das imagens atuais para colocar em
cena as lutas populares de camponeses e trabalhadores rurais que perpassam a
história da terra do zebu e de todas as terras do mundo, daqui até a casa do
caralho. (Incluindo-se aquele grupo de ingênuos ou de radicais que se apossaram
de uma vaca profanada e, movidos pelos ditames da saciedade imediata ou da
afronta desmedida, se precipitaram ao churrasco, sem saber ou sabendo que se
tratava de uma matriz premiada, de valor milionário). Ou talvez, um Black block
formado por tipos nativos descobertos ou inventados pela antropologia do
Movimento Desemboque, na década de 1990 – os cyberjecas.
O zebu é um ser peculiar, como também sua história no
Brasil. Ele não foi criado como tal no Gênesis inaugural da criação divina. Se
foi causado por Deus, isto se deu através de um artifício humano, como várias
raças caninas, por exemplo, ou os frangos de granja, e tornou-se um
acontecimento de dimensão planetária, que se diferencia, sobretudo, pela
voracidade com que avança na conquista de territórios da bovinocultura e da
tecnologia, destituindo outras raças, melhorando sua performance genética e
inovando sua reprodutibilidade; tudo isso acompanhado de longos registros de
genealogias, que garantem a qualidade genética não só de matrizes e
reprodutores, mas também das ampolas de sêmen.
Antes mesmo que Hitler lançasse seu delírio ariano da
superioridade genética no ar do seu tempo, criadores de gado do interior de
Minas, atravessaram o oceano até a Índia, e conseguiram sair de lá trazendo
alguns espécimes do animal considerado sagrado,para remanejá-los geneticamente em animais de corte e produção leiteira. Hoje quando vemos um reprodutor ou uma matriz posando para a foto, temos uma ligeira sensação de que estão orgulhosos de si mesmos, como se pertencessem a uma linhagem sagrada ou a uma genealogia poderosa.
Uma empresa que, convenhamos, foi uma façanha inédita. Porém a vaidade do exclusivismo e a ordem econômica ofuscaram a façanha, o resultado ofuscou o processo, a criatura ofuscou a criação. Assim, aquela que poderia se tornar “terra das façanhas inéditas” tornou-se terra do zebu, envolvendo e organizando os regimes de produção econômica, cultural e de subjetividaddes tanto das massas quanto das elites. Toda criação e/ou ensaio de façanhas inéditas foram perdendo interesse e encanto perto do orgulho zebuíno; ou buscaram refúgio na casa do caralho.
Surgiram, então, as lendas que sustentam mitos, impondo a
cada geração novos enigmas de superação na busca de sua própria criação.
E, se a arte não tem a função de narrar ou documentar
histórias pessoais ou nacionais, o artista tem que enfrentar seu próprio tempo.
A arte projeta na tela as potências do imperceptível e do impensado, enquanto o
artista traça linhas de experimentações para fora dos territórios ocupados,
sejam eles sociais, subjetivos, ou estéticos. A linha que Baroli traça da terra
do zebu à casa do caralho nos chama a perceber entre luzes e sombras,
justamente, o que está “além do que possa parecer”. Faz passar pela atualidade
de seu tempo o atemporal, o intempestivo, o extemporâneo.
Então, a figura dançando com uma cabeça de boi em torno da
fogueira apresenta uma expressão multifacetada do imaginário e do simbólico
inconscientes que é, ao mesmo tempo, uma brincadeira em torno da fogueira, uma
dança do bumba-meu-boi, e um ritual de adoração do bezerro de ouro que se
atualizam, pelo traço, a cor e a composição do ritmo, no modo de vida do povo
da terra do zebu. E no seu “por vir”.
A cabeça do padroeiro decepada pelas sombras revela a
intensidade do combate travado no jogo de luz e sombra em que o artista se
move, com a mesma audácia com que incendeia monumentos e ícones. O padroeiro,
por seu lado, parece enfiar, ele mesmo, a cabeça na escuridão, como um avestruz
celeste que se alheia dos acontecimentos.
A grande faixa branca (ou em branco) no canto inferior
esquerdo é entrada para uma grande invasão, uma via que liga com a casa do
caralho, e a necessidade da obra de não se fechar sobre si mesma.
Seus temas e o modo como os descreve nos títulos dão sinais
de sua determinação para o combate; mostra que sua arte não se furta a abrir as
feridas necessárias na carne de seu tempo. Mas é um combate sem rancor, sem
ressentimentos, que procura o ultrapassamento mais que lutar contra, sem buscar
vingança, sem desejar ocupar o lugar daquilo que combate. Como nômade, quer
percorrer o território ignorando as fronteiras do império, sem se preocupar em
tomar o lugar do imperador.
Não se trata, pois, de localizá-lo em alguma escola ou
tendência da arte contemporânea, ou de situá-lo em um embate pessoal; tampouco,
de decretar a queda de mitos. Trata-se da materialidade da cena em que ideias,
afetos e perceptos nos fazem despertar de um sono iconoclasta, recriando, da
terra do zebu à casa do caralho, o inconsciente do mundo.
Órfilo Rodrigues Fraga Júnior
Professor mestre em filosofia