Outro dia, conversei com um velho conhecido da época em que eu comercializava bezerros. Relembramos o que as pessoas chamam de “no nosso tempo”: o passado. A atividade pecuária mudou bastante nesse período; muita água passou por debaixo da ponte. Apareceram tecnologias inovadoras e diferentes práticas de manejo. Antes, tudo era primitivo, rudimentar.
Meu negócio era comprar e vender: comprava bezerros e vendia depois de uns meses, um ano. Os animais ganhavam peso, cresciam, mostravam suas potencialidades ou defeitos. Eram tratados, vermifugados, separados em lotes e postos à venda. Era assim que funcionava.
A rotina consistia em acordar cedo, percorrer uma extensa região, estradinhas precárias, na maioria das vezes sem sinalização, atravessar pontes, mata-burros, me perder em entroncamentos, rodar bastante até encontrar o vendedor. Aí, começavam as negociações – a parte mais importante da atividade –, não sendo raro durarem um dia inteiro. Pechinchar, regatear, reprovar e elogiar; o principal era tirar proveito das oportunidades. O pessoal dizia: “o negócio tem de ser bom para os dois”. Só não podia ofender o camarada. Negócio fechado, o caminhão viria buscar dali a uns dias. E se trocarem algum animal? O jeito era cortar a vassoura do rabo dos bezerros para evitar velhacarias.
Muitos bezerros recém-desmamados chegavam ao curral berrando, chamando a mãe, chorando o desmame precoce. Tentavam escapar, passar nas cercas de arame farpado e sumir nas capoeiras. Devidamente marcados, recebiam cuidados, definia-se quem era “cabeceira” e “fundo”, isto é, os melhores, os mais promissores, e os refugos. Nessa hora, falavam os vaqueiros mais experientes.
Após a marcação a ferro quente, era preciso matar carrapatos, extrair os bernes e colocar esterco ou chumaços de pano velho embebidos em preparados à base de cresóis nas feridas. O ferrão, vara comprida com ponta de metal, intimidava, direcionando o fluxo dos animais nos currais.
Periodicamente, eram reunidos para conferências e apartações. Uma prática comum consistia em passar óleo queimado – óleo usado de motor –, misturado com um inseticida qualquer, bastante tóxico e utilizado com pouco zelo, nas bicheiras. Cada um com seu galão e pincel artesanal, feito com crina de cavalo, espalhava a mistura nas feridas dos bezerros.
Se fosse necessário, realizavam-se intervenções cirúrgicas. Feitas a canivete, sem assepsia ou anestesia, consistia em jogar o animal no chão, amarrar bem forte e executar o serviço. Às vezes, a depender do diagnóstico, faziam-se sangrias, “para purificar o sangue”. A impressão que se dava era de estarmos na Idade Média. Se deixassem, alguns fariam o mesmo com as pessoas.
Um dia, muita coisa mudou, não necessariamente para melhor: aumentou o desmatamento e o uso de agrotóxicos; a burocracia foi informatizada, esperteza virou informação falsa, e a ciência não venceu os preconceitos e a estupidez. Apesar dos avanços, é estranho ver muita gente fazendo e pensando as mesmas coisas de cinquenta anos atrás, na roça e na cidade; ficaram presos no passado?
Renato Muniz B. Carvalho