Na última quinta, pela manhã, minha amiga sai de casa e da calçada oposta um homem abaixa as calças, mostrando-lhe o pinto. Ela corre até o guarda da esquina. “Moço! Um homem acabou de abaixar as calças pra mim, ali, bem na frente da minha casa!”.
O guarda, sentado em sua cadeira de plástico, a olha com enfado: “Não posso fazer nada, senhora, a rua é pública”. Ela então acrescenta, à guisa de experimento sociológico: “Ele quebrou o vidro do meu carro”. O guarda se levanta num salto, pega o cassetete e fala, com sangue nos olhos: “Onde?! Cadê?! Pra que lado ele foi?!”.
O acontecimento me parece uma dessas histórias talmúdicas ou contos chineses, cheios de significados. Agredir uma mulher, na visão do guarda, é um direito do cidadão. Agora, quando quebra o vidro de um carro é um absurdo que deve ser combatido imediatamente. #mexeucompatrimôniomexeucomtodos!
O “guarda da esquina” é um personagem antigo da política brasileira. Na reunião em que foi proposto o AI-5, o vice-presidente Pedro Aleixo teria dito a Costa e Silva: “O problema deste ato não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país, é o guarda da esquina”.
Queria dizer que se do alto vem a mensagem de que dane-se a lei, lá embaixo a turma pode, veja só, entender exatamente o que foi dito e sair barbarizando.
A frase geralmente é citada como uma ponderação razoável, mas me soa reveladora do autoritarismo nacional. Uma coisa é o alto escalão mandar às favas a civilidade, fechar o Congresso, avacalhar com o Estado de Direito. Isso aí tá ok, ok? Agora, o pobre, não.
O pobre tem que obedecer. O fazendeiro que queima a Amazônia é empreendedor. O MTST que invade um prédio abandonado é terrorista.
A atitude do guarda da esquina na história da minha amiga ecoa a de boa parte da elite brasileira nas últimas eleições.
Durante a campanha, Bolsonaro abaixou as calças diante da lei, dos direitos humanos, da Amazônia, da educação, da cultura, das minorias, dos oponentes, mas garantiu que com Paulo Guedes ninguém iria quebrar o vidro do nosso carro. Fiesp, CNI, igrejas evangélicas, Hebraica do RJ, mercado financeiro, agronegócio, parte da imprensa, todos riram, aplaudiram e disseram: vamos nessa!
Bolsonaro segue abaixando as calças, todos os dias, para a democracia, o Estado de Direito, os jornalistas (e principalmente as jornalistas, covarde que é), mostrando a arminha para qualquer noção de civilidade e dignidade, esgarçando o tecido já puído das nossas instituições.
E o primeiro andar continua de olho, exclusivamente, no vidro do carro. Ou, no máximo, suspeitando que Paulo Guedes subiu no telhado, manifestam-se alguns, aqui e ali, supostamente assustados, como se despertassem do sono da mosca tsé-tsé e descobrissem que Bolsonaro segue falando e fazendo o que sempre falou e fez durante a vida toda.
Sabe o que é pior? Se houver manifestações de rua e quebrarem um único vidro de carro, apedrejarem uma agência bancária ou um McDonald’s, os mesmos que o apoiaram nas eleições vão apoiar medidas de exceção que, veja bem, não são um golpe, dirão, mas ações extraordinárias diante de uma situação extraordinária.
A miséria, a falta de saneamento básico, o abismo entre brancos e negros, entre homens e mulheres, a violência policial nas periferias, as milhões de crianças cuja educação está entregue às mãos de um ministro cujo analfabetismo é um dos menores defeitos: nada disso é motivo de escândalo. Mas vai meia dúzia de moleques mascarados quebrar uma vitrine pra ver o que acontece.
Eis o grande patrimônio nacional, nosso maior orgulho, nossa instituição mais sagrada: sua majestade, o vidro.
Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.
_Folha de S. Paulo_ 23.2.2020
Cidade de Uberaba