Antes de ser, já queria ser.
Apesar dos anticoncepcionais da auto-censura, nasci.
Sou um pensamento-neném, precocemente envelhecido.
Sinto-me umedecido pelo líquido amniótico que me envolvia
no ventre cefálico que me gerou.
Nasci mutilado, revoltado. Rebelde, contraditório.
Rebelde, cortei a linha que me amarrava ao útero materno,
na escuridão indecisa e morna de uma eterna e segura dependência, e rumei para a insegurança, para o mistério, para a dúvida.
Nasci. Mas tive vergonha de ser um pensamento nu.
Procurei vestir-me com a roupagem fosforescente da palavra.
Passei do mundo incolor da abstração ao mundo acariciante do som e da cor. Por fatalidade fui um mal nascido.
Nasci plebeu, sem genealogia histórica e sem linha.
Nasci rebelde.
Detesto linhas que prendem.
Odeio qualquer palavra que destile opressão e limite.
Há linhas que prendem, oprimem e escravizam.
Odeio a linha que prende o peixe livre das grandes águas.
A linha que amarra a pipa livre no vasto céu.
A linha fria de aço que segura o trem
e o submete a um destino marcado e sem opções.
A linha que amarra o navio ao cais
e lhe nega o perigo da viagem.
A linha gráfica que encurrala o espaço indefinido na dimensão
da figura. A linha mentirosamente azul
que fecha o horizonte, num círculo. A linha luminosamente reta
que prende a estrela a meus olhos e a torna meu objeto.
Odeio linhas moralísticas que cindem dogmaticamente o certo
e o errado.
As linhas friamente lógicas
que dividem a verdade e o erro. As linhas freneticamente
subjetivas que separam o belo e o feio.
Tenho nojo das linhas que escravizam o homem livre
aos padrões ideológicos ou sociais.
Detesto linhas. Odeio limites.
Adoro o infinito, o intangível, o inacessível, o inefável.
Nasci rebelde e iconoclasta. Meu prazer é quebrar ídolos.
Gosto de estuprar virgens tradicionais. Violentar certezas absolutas. Amo as defenestrações. Adoro engravidar formas novas.
O novo me fascina.
Por fatalidade nasci precocemente envelhecido.
Tremendamente velho. Incapaz de fecundar.
Sinto-me enjaulado no sudário escuro de palavras gastas e envelhecidas.
Esclerosadas. Algemadas à linha etimológica da origem.
Quero falar a língua virgem das palavras inexistentes,
mas as vestes macias e empoeiradas dos vocábulos desgastados efeminam minha força, castram minha masculinidade.
Sinto as dores do parto da noite que tenta dar à luz a aurora
e pare apenas uma candeia bruxuleante.
A fosforescência da palavra gasta dissolve em estilhaços a força luminosa do relâmpago. Queria falar a língua do raio e da borrasca e apenas balbucio a linguagem medrosa da brisa.
"Novo-velho, velho-novo", aspirando ao futuro mas algemado ao passado, garanhão castrado, viril efeminado, vivo a contradição e o absurdo.
Quero ser a verdade e dissolvo-me na mentira.
A austeridade é meu programa, mas o luxo me fascina.
Fiz da liberdade a minha deusa, mas a escravidão cômoda me alicia.
Quero assumir mas a responsabilidade me amedronta.
Quero viver perigosamente mas o risco me apavora.
Quero-me livre mas sinto-me algemado.
Sado-masoquista, quero perfurar e ser perfurado.
Sou eu, e não sou eu.
Sinto-me singular e múltiplo, uno e dividido, inteiro e fraturado.
Não me auto-identifico. Já sou, já não sou. Apenas existo.
Eu sou a ideia-contradição. A lógica. A irrealidade do real,
sou apenas o dever de pensar.
Sou o paradoxo - Sou o HOMEM.
( Poeminha do saudoso prof. Paulo Rodrigues, da antiga Fista, em plena crise existencialista, em 1979)
Cidade de Uberaba