Já passava das cinco horas, mas o sol ainda não havia nascido na manhã do dia 14 de junho de 1878. A pequena cidade de Uberaba despertou em sobressalto com o ruído de cinco tiros disparados em sequência. Vizinhos pularam da cama e, no quintal de uma casa próxima à igreja matriz, encontraram em agonia o bacharel Evaristo Rodrigues da Silva Carvalho. Três tiros disparados contra o peito e mais dois no ouvido direito não conseguiram tirar sua vida. Ao seu lado, o delegado de polícia encontrou um revolver vazio.
Episódios de violência não eram incomuns no sertão do Triângulo Mineiro do séc. XIX – e esse poderia ter sido mais um caso de vingança envolvendo jagunços e coronéis. Mas, aparentemente, Evaristo havia tentado o suicídio. Dias antes tivera a notícia de que sua nomeação como Juiz de Direito da comarca da Posse, na província de Goiás, havia sido tornada sem efeito. Mais que isso: outro juiz já havia assumido o posto. Desempregado, sem patrimônio e sem família rica, entregou-se ao ato de desespero. Agonizou por semanas em uma casa de saúde, vindo a falecer no dia 3 de julho.
Nos tempos de hoje – onde magistrados são cargos de carreira, concursados, com altos salários, estabilidade e direito a benefícios – pode parecer estranho um infortúnio como esse. Mas as coisas eram diferentes no reinado de Dom Pedro II. O governo era uma monarquia parlamentarista, mas cabia ao imperador nomear o presidente do Conselho de Ministros, que montava o gabinete e o submetia à aprovação dos deputados e senadores. Com eleições manipuladas pelas lideranças locais, o imperador não tinha dificuldades em manter o parlamento sob controle. Alternava o ministério entre os partidos Conservador (“saquaremas”) e Liberal (“luzias”). Na prática, mero rodízio, já que programas e ideias eram similares. De onde surgiu a frase do Visconde de Albuquerque: “nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder”.
Evaristo Carvalho era de origem relativamente humilde. Formara-se em direito e havia feito uma carreira de sucesso durante o longo mandato do conservador Antero Cícero de Assis, que ocupou a presidência da província de Goiás por sete anos (1871 a 1878). Dois anos antes de Antero chegar ao governo, Evaristo fora nomeado promotor público na comarca do Rio Paranaíba, mas desentendeu-se com aliados do então presidente da Província e foi afastado do cargo. Quando Antero assumiu, nomeou Evaristo como Juiz municipal em Rio Verde. Dois anos depois, assumiu o cargo de Juiz de Direito interino na comarca de Rio das Almas.
Os cargos de juiz eram de livre nomeação do Ministério da Justiça, usualmente negociados com as autoridades locais. Poucos eram os juízes efetivos, e muitos deles se afastavam das comarcas em intermináveis licenças remuneradas. O resultado era um festival de “juízes interinos” nomeados a título precário por indicação dos presidentes provinciais. Em 1876, Evaristo estava em licença para tratamento de saúde na cidade de Goiás (atual Goiás Velho) quando foi nomeado juiz interino da 1ª e 2ª Varas da Capital.
A oposição o acusava de ser um “pau mandado” de Antero Cícero, colocado no cargo para legitimar desmandos e arbitrariedades. Desfrutava da intimidade do presidente, que o tratava como “distinto amigo” em documentos oficiais. Prestigiado, era convocado como examinador de história e geografia nas bancas de seleção de professores para o magistério. No cargo de Juiz, decidia questões de herança e propriedade de escravos. Uma de suas sentenças, em outubro de 1876, ganhou notoriedade: a pedido da Curadoria, decidiu pela nulidade dos certificados de propriedade e libertou quatro escravos reivindicados por uma viúva. Sua decisão acabou reformada na segunda instância e, posteriormente, no STF. Mas a discussão ganhou as páginas da revista Gazeta Jurídica, do Rio de Janeiro.
Em janeiro de 1878, Dom Pedro girou a roleta do ministério e o poder voltou às mãos dos liberais. Um novo presidente – Luis Gonçalves Crespo – foi nomeado para Goiás, devendo assumir no meio do ano. Rei morto, rei posto: Antero Cícero perdeu o poder que tinha no Ministério da Justiça. Em 9 de março, ainda conseguiu nomear o amigo Evaristo, que estava afastado por problemas de saúde, para a comarca de Posse. Dois meses depois, o ato foi cancelado por seu sucessor – que indicou um aliado para o posto. Enfermo, isolado e sem perspectivas, Evaristo apertou o gatilho na fria madrugada uberabense.
(André Borges Lopes)
Cidade de Uberaba