Até as últimas décadas do século XIX, a criação de gado no Brasil dependia quase exclusivamente de bovinos do tipo europeu (“bos taurus”) introduzidos no país pelos portugueses na colonização. Era gado nativo das regiões temperadas do globo, variedades de raças europeias postas à prova nas duras condições climáticas e ambientais da América. Se adaptaram bem aos pastos dos estados do sul, assim como na Argentina e no Uruguai, onde a indústria da carne prosperou. Mas o gado europeu não tinha bom rendimento nas áreas quentes do cerrado e da caatinga: as reses eram atacadas por infestações de parasitas, não se davam bem com a alimentação disponível e sofriam ao percorrer caminhando as longas distâncias de um país imenso e sem meios de transporte modernos.
Na região do Triângulo Mineiro, segundo relatos dos pecuaristas da época, os criadores tinham que escolher entre quatro variedades: Crioula, Curraleira, Caracu e Mestiça. As três primeiras eram resultado de séculos de seleção natural e de cruzamentos pouco controlados entre raças de gado europeu, na busca de bovinos melhor adaptados. A última resultava da mestiçagem entre gado Caracu e Crioulo com alguns exemplares de bovinos do tipo conhecido como “Nilo” ou “China” – trazidos da África pelos portugueses. Era um tipo de boi diferente, mestiços do “bos indicus” nativo das regiões quentes da Índia e do Paquistão, raça que se espalhava lentamente pelo mundo e começava a despertar a atenção de alguns criadores.
Não há registros precisos da entrada desse gado “Nilo” no Brasil. Mas sabemos que, em meados do século XIX, alguns exemplares de gado indiano chegaram ao Rio de Janeiro. Inicialmente, esses bois diferentes, de proeminente cupim e barbela, eram tratados como bichos de zoológico. O “Zebu” era uma curiosidade do oriente, trazida ao país por importadores de animais exóticos como elefantes, zebras e avestruzes. Mas despertou a atenção de pecuaristas do interior do Rio, que experimentaram o seu cruzamento com o gado europeu, surpreendendo-se com os bons resultados. Pouco tempo depois, a novidade chegou ao Triângulo: alguns criadores locais compraram reprodutores no Rio e se encantaram com a rusticidade e resistência da nova raça. Começava a saga do zebu nas terras mineiras.
A medida em que prosperava na região a criação do gado indiano, ganhava corpo a ideia de não depender dos criadores fluminenses, buscando exemplares da raça diretamente na Índia. No início de 1983, Theophilo de Godoy deixou a cidade de Araguari rumo a Mumbai (Bombaim, na época) com a missão de trazer para diversos pecuaristas locais um lote de reprodutores puro-sangue. Theophilo era um personagem talhado para a tarefa: negociante, fazendeiro e então capitão da Guarda Nacional do Império, reunia a rusticidade de homem do sertão com uma incomum erudição. Embora nunca tivesse saído do Brasil, era dono de um texto elegante, colaborava com jornais de Araguari e de Uberaba, dominava razoavelmente o francês e o inglês, e conhecia o mundo pelos livros e revistas.
No dia 23 de janeiro, deixou para trás mulher, filhos e negócios e partiu para sua aventura. Viajou por terra até São João del Rey, de onde tomou um trem para o Rio. Em 24 de abril, partiu sozinho de navio para Bordéus, na França. Fez uma breve estada em Paris, onde conheceu os Zebus criados no Jardim da Aclimação. Atravessou Suíça e a Itália para tomar outro navio no porto de Gênova. A caminho da Índia, deixou o barco em Alexandria e visitou as pirâmides e museus do Cairo, retornando a bordo no porto de Suez, já no mar Vermelho. Chegou em Mumbai no dia 11 de julho, onde fez amizade com famílias abastadas da comunidade portuguesa local.
Suas aventuras de viagem e sua estada no Oriente ficaram registradas em uma série de artigos que publicou nos jornais de Araguari e Uberaba, posteriormente reunidos num livreto de 36 páginas: “Do Brasil à Índia”, disponível no acervo digital do Museu do Zebu. Mais que um documento de época, trata-se praticamente de um guia de turismo do século XIX, com descrições detalhadas das cidades, dos templos, dos costumes e da exótica vida cotidiana nas diversas cidades do sul e do norte da Índia que Theophilo visitou. Um país, na época, dividido entre o pujante Império Britânico e as decadentes possessões portuguesas.
Em 10 de janeiro de 1894, Theophilo de Godoy finalmente desembarcou de volta no Rio de Janeiro. Em outro barco, vindo de Marselha – o vapor “Aquitane” da Société Générale des Transports Maritimes – chegaram 13 touros e vacas zebus cuidadosamente escolhidos por ele nas fazendas da Índia, aos quais se somaram dois bezerros nascidos durante a viagem. Embarcados de trem para o Triângulo Mineiro, trouxeram sangue novo para aprimorar a raça que, em pouco tempo, iria dominar a pecuária da região.
Andre Borges Lopes
Cidade de Uberaba