L’AGE D’OR
Choque de Imagens
Guido Bilharinho
Obras-Primas do Cinema Europeu |
Luís
Buñuel (1900-1983) inicia sua carreira cinematográfica realizando, de plano,
dois filmes básicos do cinema, ambos de vanguarda, ambos surrealistas, além de
excelentes.
A Idade do Ouro (L’Age d’Or, França, 1930) revela diretor forrado
de ampla cultura humanística e artística e com perfeito domínio da linguagem
cinematográfica.
Tais
atributos, à evidência, não são congênitos, mas, adquiridos com estudo, esforço
e observação. Música, artes plásticas e imagens ligam-se na composição de obra
cinematográfica elaborada com rigor, liberdade, ousadia e criatividade.
Ao
espetáculo opõe-se a arte; ao convencional, o insólito; ao compreensível, a
alusão; ao contextual, o fragmentário; ao previsível, a surpresa; à restrição,
a liberdade; ao explícito, o subtendido.
A
beleza das imagens e a perfeição pictórica dos enquadramentos respaldam
temática trabalhada ao nível do significante (forma) e não apenas do
significado (conceito). Este restringe-se a sentido único, atribuído e perfilhado pelo autor, enquanto aquele
permite várias leituras e direções. Se este não passa de revólver de um tiro
só, aquele é verdadeira metralhadora giratória, espalhando petardos para todos
os lados, excetuado, compreensivelmente, o do atirador. Buñuel é alusivo e não
explicativo, fazendo com que o choque das imagens - mais do que sua simples
sucessão - ao invés de desencadear fatos e acontecimentos, revele o
imponderável das coisas tornadas ininteligíveis à mera abordagem convencional.
Se
não há liame perceptível entre a circunstância de uma vaca estar sobre uma cama
e a face da personagem enamorada apresentar-se coberta de sangue e nem ao menos
dê-se explicação para tais ocorrências, a questão é que esses e outros fatos dimensionam a liberdade,
quebrando drasticamente os limites estabelecidos pela realidade da matéria, compondo um mundo
surreal, indefinível e incontrolável como os sonhos.
Esse
inconformismo explícito contra restrições, impossibilidades e incapacidade
física do indivíduo para atender a anseios e volições corresponde à liberdade
imaginativa, intelectual e artística.
Se
há balizas - e estritas - à atividade humana, sejam as físicas, sejam as
convencionadas e impostas pela estrutura social, que impedem a aventura e a
livre locomoção, resta, como viabilidade - raramente aproveitada e, quando o
seja, apenas por poucos artistas - a deflagração do pensamento, da imaginação e
da criação artística, irrestritos por natureza e só passíveis de estreiteza e
amesquinhamento pela deficiência particular do indivíduo, não da espécie.
Se
o ser humano normalmente é coarctado em concepções e realizações, o artista não
o é, já que se utiliza da liberdade, faculdades e possibilidades que também lhe
concede a condição humana. Um deles é Buñuel. Um de seus exemplos, L’Age d’Or.
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Guido Bilharinho é
advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão
de 1980 a 2000 e autor de
livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e
regional.