quarta-feira, 11 de julho de 2018

Obras-Primas do Cinema Europeu

BERLIM, SINFONIA DA METRÓPOLE
O Ritmo do Século

Guido Bilharinho
O Ritmo do Século

Se o cinema nas duas primeiras décadas do século XX tateava à procura de uma linguagem própria com base na paulatina descoberta, utilização e domínio dos recursos da câmera, das possibilidades da imagem em movimento e dos primeiros (e fundamentais) passos para o conhecimento e conscientização dos efeitos da montagem, os anos 20 desse século assistem a eclosão de uns e outros.

         Nessa década dão-se realizações artísticas experimentais e de vanguarda como nunca antes e nem depois o cinema teria iguais, em qualidade e intensidade, bastando lembrar, entre outras, as obras de Marcel L’Herbier, Fernand Léger, Walter Ruttmann, Marcel Duchamp, Germaine Dulac, René Clair, Man Ray, Dimitri Kursanoff, Alberto Cavalcanti, Buñuel, Viking Eggeling e Hans Richter.

         Um desses filmes é Berlim, Sinfonia da Metrópole (Berlin, die Symphonie der Grosstadt, Alemanha, 1927), de Walter Ruttmann (1887-1941), que viera da realização da série abstrata Opus (1922/1925).

         Antes, pois, do célebre filme Um Homem Com Uma Câmera (Cheloveks Kinoapparatom, U.R.S.S., 1929), de Dziga Vertov, mas já influenciado pelas ideias desse realizador soviético, Ruttmann dá à luz sua obra fundamental, que se torna também, automaticamente, um dos filmes capitais do cinema.

         O que prenuncia o título materializa-se em imagem de grande esplendor, em construção de extrema perspicácia cerebral, alta acuidade visual e apropriada montagem de movimentos de tão vibrante constância e sucessividade que captam e fixam o ritmo do século, que só o cinema possibi­lita em toda sua concreticidade e grandeza.

         O filme visualiza o pulsar da atividade humana na era 01 (zero um) da máquina, já que a era 0 (zero) deu-se no século XIX, numa demarragem que não tem nem terá fim, prefigurando ininterruptas continuidade, aperfeiçoamento e desenvolvimento, como o transicional século XX demonstrou.  Dificilmente será encontrável obra que traduza e transfigure em arte o cerne de seu tempo em sequência poética de figurações instantâneas do habitat construído até então pelo ser humano e de sua ativa inserção nesse contexto.

         A velocidade dessa sucessão em cortes rápidos e montagem célere aliada à articulada visão do artista resultam em primorosa súmula desse universo humano numa das grandes metrópoles do planeta.

         No filme ressaltam-se em iguais importância e intensidade a realidade material urbana e a ação e movimentação nela do ser humano, sem esquecer os instantâneos, com toda sua construção imagética, de alguns animais, inclusive em montagem contrastante com atos humanos.

         No primeiro caso, avultam as imagens do outrora mais veloz meio de locomoção terrestre, o trem, em perspectivas impressionantes, resultantes de enquadramentos de grande eficácia estética. Daí em diante sucede-se a exposição da metrópole que desperta suas forças vivas, abrangendo sem-número de situações e aspectos urbanos mostrados em tomadas adequadamente anguladas, por força do inteligente e artístico olhar do cineasta, construtor de uma poética não só da imagem, tão forte como a da palavra, mas de verdadeira poética da matéria.

         Só olhar desse quilate teria condições de empalmar, utilizar e direcionar os recursos da câmera e da montagem para configurar obra desse vigor e proporções, em que cada instantâneo e sua reunião e montagem atingem força estética proveniente de um poder e sofisticação raramente encontráveis.

         Enfim, em questão de imagem e montagem não há nada que já não esteja nesse filme ou que nele não se embase e inspire, e que não é apenas efeito da vanguarda, mas, a própria vanguarda. O filme não constitui, obviamente, ficção. Nem documentário. É imagem em movimento. Cinema, enfim.
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         Além e independentemente de seu valor artístico, revela uma cidade diferente do estereótipo utilizado para explicar e justificar o progresso do país sob a posterior administração nazista. Numa pujança como aquela não há nada extraordinário nesse êxito, visto que representou o desenvolvimento natural que empolgação do poder e inteligente manipulação cristalizaram. Milagre mesmo seria esse grupo ter os resultados alcançados em países subdesenvolvidos. Na Alemanha que o filme mostra não é vantagem. Malgrado a derrota na Primeira Grande Guerra e o processo inflacionário dos anos de 1920, o país era, ao findar a década, o mais desenvolvido do mundo.

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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e regional.