METROPOLIS
Criatividade e Arrojo
Guido Bilharinho
A
ficção-científica nasce com Edgar Allan Poe, que, além de tudo, em 1844, quase
um século antes de Orson Welles, agita Nova York com a falsa notícia, publicada
no New York Sun em tons
sensacionalistas, da travessia do Atlântico por máquina voadora dirigida, entre
outros, por um certo Monck Mason. Aliás, Poe é, também, o criador da ficção
policial. Na literatura, são gêneros menores ou, na concepção de muitos, nem o
são. Apenas, simples entretenimento. Na verdade, com exceções tão raras quanto
notórias, entre as quais os contos poescos, não passam disso.
No
cinema, contudo, tanto um como outro adquirem importância e status artístico, assumindo posição
destacada.
Metropolis (Idem, Alemanha, 1926), de
Fritz Lang (Áustria, 1890-1976), é talvez, cronologicamente, o primeiro grande
filme de ficção-científica. Não simplesmente o primeiro, porque, antes dele, e
desde Méliès, com seu Voyage Dans la Lune
(França, 1902), o gênero já se instala no cinema. Mas, o primeiro de valor
artístico, de arrojada criatividade.
É
filme expressionista. Síntese entre o expressionismo, a inventividade artística
e a ficção-científica.
Impressionam,
nele, a convergência e a convivência de concepções futuristas na arquitetura,
no urbanismo e na parafernália e infraestrutura mecânicas, abrangendo desde TV,
robótica (um perfeito e, segundo consta, primeiro robô do cinema), e complexa
combinação de máquinas de toda espécie, função e finalidade com as mais
antiquadas e superadas formas de habitação subterrânea, como as catacumbas.
Lang
coloca, pois, lado a lado, modernidade e arcaísmo: a) arranha-céus colossais e
coruscantes, entre os quais se insere, insólita, a casa-cabana de cientista
genial, porém, estereotipadamente aloucado, vezo expressionista ecoando a
tendência preconceituosa do homem comum em relação aos sábios; b) portentosos
viadutos e sombrios corredores catacúmbicos cavados na rocha; c) interiores
futuristas e cavernas tumulares de ossuários à mostra. Estas, aliás, lembram e
remetem àquela descrita por Edgar Allan Poe (EE. UU., 1809-1849), no conto “O
Barril de Amontillado” (The Cask of Amontillad), da série Contos de Terror, de Mistério e de Morte. Conto este, aliás, que,
fundido com “O Gato Preto”, e ambos alterados em muitos pontos, servem de base
ao segundo episódio do filme Muralhas do
Pavor (Tales of Terror, EE.UU., 1962), de Roger Corman.
Antes
do Chaplin de Tempos Modernos (Modern
Times, EE.UU., 1936), Lang focaliza a robotização do operário pela imposição de
movimentos uniformes e constantes.
Raros
são os filmes, proporcionalmente à evolução científica da época de sua feitura,
com poder imaginativo tão desenvolvido e marcado por percepção e realização tão
avançadas e ousadas como Metropolis.
E, ao mesmo tempo, tão terrível em captar a realidade da exploração do trabalho
humano e a volubilidade e desorientação das massas amesquinhadas e
animalizadas.
Nem
só isso, nem só tudo isso, porém. Além
das notórias distorções impostas pelo expressionismo, realçando o mistério, o
inaudito e o indizível, o sentimento humano e humanitário permeia o filme do
início ao fim. Afinal, suas personagens são seres humanos, malgré tout.
Como
construção cinematográfica e criação artística, Metropolis constitui uma das obras capitais não só da
ficção-científica e do expressionismo, mas, do cinema, que nem o exagero e
mesmo simploriedade da justaposição antinômica capital x trabalho conseguem
empanar. Porém, são justamente excessos, desvirtuamentos e contrastes que Lang
quer realçar, mesmo que, nesse passo, incida num maniqueísmo convencional.
Sob
o aspecto da interpretação dos atores, o filme, desde 1926, denuncia o que
muitos, à época, inclusive e principalmente Chaplin, não queriam ver e aceitar:
a limitação imposta pela falta do som, levando não só nesse, mas,
principalmente nele, a demasias interpretativas para conseguirem os atores
exprimir e enfatizar as emoções e sentimentos que avassalam as personagens. No
caso, é enorme o esforço nesse sentido dos dois protagonistas, o casal de
jovens inserido no vórtice dos acontecimentos e neles interferindo com sua ação
idealista (e bastante idealizada).
Por
fim, em se tratando, como se trata, de filme expressionista, mesmo que de
ficção-científica, é inadmissível (para se ficar num termo civilizado) sua
colorização, conforme versão existente. A própria gênese do filme, como de
qualquer obra do expressionismo cinematográfico, repele a claridade, a
iluminação, o pluralismo cromático. Sob esse prisma, a cópia colorizada que a
televisão por vezes exibe, e segundo se sabe, ainda por cima mutilada, é
simplesmente anti-expressionista e ofensiva à autoria e à criação artística.
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Guido Bilharinho é
advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão
de 1980 a 2000 e autor de
livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e
regional.