domingo, 17 de junho de 2018

Obras-Primas do Cinema Europeu


METROPOLIS
Criatividade e Arrojo

Guido Bilharinho

Metropolis


         A ficção-científica nasce com Edgar Allan Poe, que, além de tudo, em 1844, quase um século antes de Orson Welles, agita Nova York com a falsa notícia, publicada no New York Sun em tons sensacionalistas, da travessia do Atlântico por máquina voadora dirigida, entre outros, por um certo Monck Mason. Aliás, Poe é, também, o criador da ficção policial. Na literatura, são gêneros menores ou, na concepção de muitos, nem o são. Apenas, simples entretenimento. Na verdade, com exceções tão raras quanto notórias, entre as quais os contos poescos, não passam disso.

         No cinema, contudo, tanto um como outro adquirem importância e status artístico, assumindo posição destacada.

         Metropolis (Idem, Alemanha, 1926), de Fritz Lang (Áustria, 1890-1976), é talvez, cronologicamente, o primeiro grande filme de ficção-científica. Não simplesmente o primeiro, porque, antes dele, e desde Méliès, com seu Voyage Dans la Lune (França, 1902), o gênero já se instala no cinema. Mas, o primeiro de valor artístico, de arrojada criatividade.

         É filme expressionista. Síntese entre o expressionismo, a inventividade artística e a ficção-científica.

         Impressionam, nele, a convergência e a convivência de concepções futuristas na arquitetura, no urbanismo e na parafernália e infraestrutura mecânicas, abrangendo desde TV, robótica (um perfeito e, segundo consta, primeiro robô do cinema), e complexa combinação de máquinas de toda espécie, função e finalidade com as mais antiquadas e superadas formas de habitação subterrânea, como as catacumbas.

         Lang coloca, pois, lado a lado, modernidade e arcaísmo: a) arranha-céus colossais e coruscantes, entre os quais se insere, insólita, a casa-cabana de cientista genial, porém, estereotipadamente aloucado, vezo expressionista ecoando a tendência preconceituosa do homem comum em relação aos sábios; b) portentosos viadutos e sombrios corredores catacúmbicos cavados na rocha; c) interiores futuristas e cavernas tumulares de ossuários à mostra. Estas, aliás, lembram e remetem àquela descrita por Edgar Allan Poe (EE. UU., 1809-1849), no conto “O Barril de Amontillado” (The Cask of Amontillad), da série Contos de Terror, de Mistério e de Morte. Conto este, aliás, que, fundido com “O Gato Preto”, e ambos alterados em muitos pontos, servem de base ao segundo episódio do filme Muralhas do Pavor (Tales of Terror, EE.UU., 1962), de Roger Corman.

         Antes do Chaplin de Tempos Modernos (Modern Times, EE.UU., 1936), Lang focaliza a robotização do operário pela imposição de movimentos uniformes e constantes.

         Raros são os filmes, proporcionalmente à evolução científica da época de sua feitura, com poder imaginativo tão desenvolvido e marcado por percepção e realização tão avançadas e ousadas como Metropolis. E, ao mesmo tempo, tão terrível em captar a realidade da exploração do trabalho humano e a volubilidade e desorientação das massas amesquinhadas e animalizadas.

         Nem só isso, nem só tudo isso, porém. Além das notórias distorções impostas pelo expressionismo, realçando o mistério, o inaudito e o indizível, o sentimento humano e humanitário permeia o filme do início ao fim. Afinal, suas personagens são seres humanos, malgré tout.

         Como construção cinematográfica e criação artística, Metropolis constitui uma das obras capitais não só da ficção-científica e do expressionismo, mas, do cinema, que nem o exagero e mesmo simploriedade da justaposição antinômica capital x trabalho conseguem empanar. Porém, são justamente excessos, desvirtuamentos e contrastes que Lang quer realçar, mesmo que, nesse passo, incida num maniqueísmo convencional.

         Sob o aspecto da interpretação dos atores, o filme, desde 1926, denuncia o que muitos, à época, inclusive e principalmente Chaplin, não queriam ver e aceitar: a limitação imposta pela falta do som, levando não só nesse, mas, principalmente nele, a demasias interpretativas para conseguirem os atores exprimir e enfatizar as emoções e sentimentos que avassalam as personagens. No caso, é enorme o esforço nesse sentido dos dois protagonistas, o casal de jovens inserido no vórtice dos acontecimentos e neles interferindo com sua ação idealista (e bastante idealizada).

         Por fim, em se tratando, como se trata, de filme expressionista, mesmo que de ficção-científica, é inadmissível (para se ficar num termo civilizado) sua colorização, conforme versão existente. A própria gênese do filme, como de qualquer obra do expressionismo cinematográfico, repele a claridade, a iluminação, o pluralismo cromático. Sob esse prisma, a cópia colorizada que a televisão por vezes exibe, e segundo se sabe, ainda por cima mutilada, é simplesmente anti-expressionista e ofensiva à autoria e à criação artística.

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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e regional.