NOSFERATU
A Arquitetura do Terror
Guido Bilharinho
A Arquitetura do Terror |
Em 1922, na Alemanha, Friedrick Wilhelm Murnau (1889-1931) realiza Nosferatu (Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens), baseado no livro de Bram Stoker, conquanto sem dizê-lo e até mudando os nomes das personagens, o que lhe valeu, a ele e ao produtor do filme, processo judicial.
Não obstante ter-se posteriormente várias versões do tema, como as realizadas por Tod Browning (EE.UU., 1932), Werner Herzog (Alemanha, 1979) e Francis Ford Coppola (E.E. UU., 1992), é indispensável - e mesmo inevitável - compará-lo com a refilmagem de Herzog.
Não por ser alemã, mas, porque Herzog não efetua sua versão do assunto, mas, deliberada e meticulosamente, reconstrói o roteiro de Murnau com ênfase na figura de Drácula. Só que o faz modernamente, já com recursos técnicos superiores, além do som e da cor, inexistentes no início da década de 1920.
Esses fatores permitem-lhe poetizar as terríveis existência e práticas mortais de Drácula, realizando filme belíssimo e, como é seu propósito, paralelizando o original cinematográfico de Murnau. Conquanto tudo isso, não supera o paradigma e imprime ao tema orientação diversa e, em alguns casos, contraposta.
Com Murnau, a ação, os atos e fatos que a compõem são apresentados em cenas e sequências breves e cortes rápidos, essencializando-se a exposição temática. Em Herzog, com auxílio da dialogação, explicitam-se mais os significados do conteúdo das imagens e nelas mais se demora.
Nesse modus faciendi, evidente retrocesso. Se na década de 1920, não tendo o cinema nem trinta anos de existência, obtém-se acentuada contenção, que permite entendimento e acompanhamento do sentido imagético, o contrário, cinquenta anos depois, revela diminuição do rigor criativo do cineasta para atendimento do vicioso comodismo das plateias.
O filme de Herzog, sob esse prisma, é linear e, em alguns casos, comete excessos, como nas cenas da longa e morosa viagem do corretor de imóveis (o mocinho da trama), entre a aldeia onde se hospeda e o castelo de Drácula, nos Cárpatos, na mítica Transilvânia.
Em Murnau, não só isso (como tudo o mais) é feito com parcimônia e economia de meios, entre os quais sobreleva o tempo.
Se Herzog é poético e paisagístico, Murnau é plástico, escultural e arquitetônico. Se tudo naquele é banhado por suavidade pictural, neste sobressaem linhas e formas. A cena, esculpida ao vivo, de Drácula no tombadilho do funesto navio que o conduz a Bremen, tendo como ornamento o mastro e o cordalhame marítimo, é de expressiva beleza, tornando-se emblemática.
Talvez dada sua grandiosidade criativa, Herzog não a tenha desejado (ou podido) reproduzir. No navio de seu filme, Drácula não aparece, restando apenas presença referencial induzida, não obstante mortífera.
Em Murnau surge duas vezes, no porão e no tombadilho e, em ambas, de maneira impressionante e aterradora.
Além disso, da linearidade explicativa de um e do rigor e concisão de outro, ocorre outra importante divergência de concepção entre esses filmes.
Como se disse, Murnau, por uma série de razões e exigências técnicas e de produção, contém-se e substancializa-se. Contudo, essa característica é também conceitual e consciente. Seu Drácula não se expõe nem é exposto. Apenas existe, surge e age. Rápida e fulminantemente. Dele mais não se sabe nem se diz. É o perigo e a morte. Impessoais, objetivos, determinantes. Já Herzog humaniza a figura, que exterioriza sua sina eterna e a lamenta. Mas, nem por isso é menos letal.
Nítida, porém, é a semelhança física entre os dois atores, procurando e conseguindo Herzog reconstruir fisicamente a personagem de Murnau. Porém, esta é hierática, esguia, ágil. A de Herzog, dadas sua humanização e maior exposição, mais presente e lenta. Ambas, no entanto, eficazmente concebidas e concretizadas.
No mais, Herzog altera, em vários pontos, alguns fatos, como a volta do corretor inconsciente e dominado pelo contágio do vampiro, enquanto que em Murnau retorna sem esse estigma, reintegrando-se no convívio familiar. Notadamente, altera a perspectiva de Murnau, que encerra a tragédia com a possibilidade de sua continuidade, o que se interpreta como sinal do tempo.
Costuma-se afirmar que Murnau previu Hitler. Não é tão certa essa possibilidade, já que, se há previsão, seria de Bram Stoker e não dele. Ademais, e principalmente, nada induz a isso. O fenômeno vampiresco e a lenda do conde Drácula preexistem ao século XX.
É verdade que em Murnau sai-se desenhando cruzes nas portas das casas onde existem pessoas tomadas pela peste, o que reporta às suásticas apostas nas residências dos judeus pelos nazistas. Todavia, mera coincidência. Nada tem a ver uma coisa com outra. Na Noite de São Bartolomeu, também sinalizaram-se as residências dos huguenotes antes de sua matança, conforme o respectivo episódio em Intolerância (Intolerance, EE.UU., 1916), de D. W. Griffith.
A estória de Drácula, conquanto não esgote seu significado em si mesma, refere-se a temores, anseios e angústias humanas atávicas e milenares, não sendo, por isso, suscetível desse tipo de extrapolação. O fenômeno nazista é de outra ordem, não obstante também amoral e impiedoso.
Em suma, do ponto de vista de construção, inventividade e linguagem cinematográfica, o filme de Murnau é superior ao de Herzog. Sua depurada beleza emerge da própria imagem e sua montagem. No filme de Herzog exsurge do conteúdo da imagem.
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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e regional.