Padre Prata - 18/02/2018
A partir de 1935 minhas lembranças da praça Rui Barbosa são bem mais claras. Antes, as recordações se esvaem como nuvens que se esgarçam. Apenas alguns fragmentos teimaram em permanecer, tênues. Lembro-me dos carros de praça puxados por cavalos. Lá na frente, num assento mais alto, o cocheiro, todo empertigado. Alguns chamavam aquela condução de coche. Outros, mais pedantes, chamavam-na de tílburi. Lembro-me também de um cinema, no início da Rua do Comércio, o Cine Alhambra. Assisti ali ao primeiro filme de minha vida. Chamava-se “O segredo da múmia”. Cinema mudo. O filme vinha em partes que eram trocadas de quinze em quinze minutos. Nos intervalos, alguns músicos entretinham a plateia. Lembro-me do João Vilaça na flauta e do Tifu no violino. O negro Tifu vestia-se todo de branco, linho 120, cabelo bem aparado, gravata borboleta. Morreu de tanto beber. A partir de 1935, já havia na Praça vários carros a gasolina, o Ford-29, o Buick, o Chevrolet, o Studebacker, o Nash.
Todos importados. Lembro-me dos nomes de alguns motoristas (chamados de chauffers), o Bahia, o Zucarelli, o Abner, o Bassoto, o Silveira, o Rola, o Miano. Este último tinha uma perna de pau, era mal-encarado e me fazia muito medo. Diziam que era jagunço do prefeito Guilherme Ferreira. Ao redor da Praça, havia uma fileira de palmeiras imperiais. Eram muito altas, lindas e majestosas. Cortadas por quem? Não sei. Cortadas por quê? Também não sei. Segundo o Mário Salvador, foram cortadas por causa dos mandruvás (marandovás ou mandarovás?) que assustavam as madames. O pessoal lá do Arquivo deve saber o nome desse prefeito. Um criminoso. Na praça não havia mão nem contramão. Cada carro trafegava à vontade. Havia os guardas de trânsito. Lembro-me perfeitamente do “seo” Alcides, pai do Alan Kardec, esse mesmo que trabalha na Universidade de Uberaba e se vestia de Rei Momo. Duzentos e quarenta quilos. Nas calçadas da Praça, à tardezinha, as moças circulavam numa direção e os rapazes na outra.
Começavam aí os namoros, chamados de flertes. Tudo muito romântico e platônico. E o carnaval? Como era bonito! Carros enfeitados de cores alegres e vistosas, levando moças belamente fantasiadas atirando serpentinas e confetes fazendo o “corso”, em volta da Praça. Colombinas, arlequins, pierrôs. Muito lança-perfume comprado ali mesmo em qualquer esquina, até pelas crianças. Havia a bisnaga de vidro e a de metal que era mais cara, dois e cinco mil reis. “Rodo” era a marca. No centro da Praça um coreto. Nas tardes de domingo, a Banda de Música do Quarto Batalhão entretinha os passantes com chorinhos, valsas e marchas. O Hino do Uberaba Sport Club era quase o hino nacional da cidade. Enquanto isso a criançada corria pela Praça, tomando Zizi e se deleitando com os picolés vendidos pelo “seo” Chico, um alemão alto, de cabelos e bigode brancos. Também ele todo vestido de branco. Seus olhos eram azuis. Muito claros. Entre o início da Rua do Comércio e o início do jardim, havia um espaço bem grande. Ali se faziam comícios, comemorações e se armavam barraquinhas nas grandes festas. Naquele espaço havia um pedestal com uma pequena cobertura. Ali, postava-se um guarda de farda azul, armado de revólver, cassetete, de luvas brancas e apito na boca. Era o responsável pelo trânsito. Um luxo. Na parte de cima da Praça havia uma imagem do Sagrado Coração de Jesus, padroeiro da cidade. Chegava-se a ela por uma escadaria, onde trocávamos figurinhas.
Tinha os braços abertos num gesto de quem abençoava a cidade. Não sei qual o prefeito que a tirou de lá. Esses prefeitos gostam muito de mostrar serviço... Descendo pela direita havia o Hotel Glória, a serralheria do Vitório Varotto, a sapataria do Abílio Ferreira Lau, a Casa Caldeira e o Katalian. Do lado esquerdo o Hotel Silva, do Augusto Bernardino da Costa. Lembro-me de um casarão na esquina com a Rua Santo Antônio, residência do Sr. Cacildo Arantes, pai de muitos filhos e filhas, sogro do Mário Palmério. Hoje, a praça Rui Barbosa perdeu muito de sua poesia. Tenho saudades daquela Praça onde a gente ficava e se divertia. Hoje é um lugar estranho onde a gente passa. Sempre com pressa. A memória vai deixando uma esteira de saudades. Tudo acabou. Tudo tem que ser assim. O progresso vai pisando sobre nossos sonhos. A Praça, hoje, não é mais um local de encontro da comunidade. É apenas uma praça qualquer onde as pessoas transitam isoladas, sempre com pressa, sempre suadas, procurando o quê? Nem elas sabem. Apenas sabem andar com pressa. Quem sabe procurado um sentido para suas vidas?
Padre Prata
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