Filmes Soviéticos Década 1920
A Arte da
Imagem
Guido Bilharinho
A Arte da
Imagem
Antonioni
afirmou que sua pretensão era escrever com a câmera (Fernando de Barros,
“Michelangelo Antonioni Fala: Eu Ainda Escreverei Com a Câmera”, in revista Cláudia, 1964).
Contudo, antes dele, em O Encouraçado Potemkin (Bronenosets
Potemkin, U.R.S.S., 1925), Sergei Eisenstein (1898-1948), já o fizera. E tanto
e tão bem, que o filme dispensa até mesmo as legendas, bastando, não para
entendimento do espectador, mas, para sua informação, que se situassem os
acontecimentos - verídicos - em tempo e espaço num texto de não mais de meia
página no início do filme.
Tudo o mais é e seria dispensável
porque as imagens, sua combinação e sucessividade falam por si, exprimindo
verdade e significado.
Não é apenas a montagem que infunde
vigor, energia e tom epopeicos ao filme, dos mesmos teor e intensidade
ocorrentes na Ilíada. Tudo o faz. A
montagem é seleção, junção e ordenamento das imagens. Em O Encouraçado Potemkin, antes dela, existem as imagens, que falam,
mais do que mostram, por si mesmas. Pela beleza resultante de sua qualidade
intrínseca, enquadramento, angulação e conteúdo. Pouco ou nada adiantariam os
três primeiros atributos se não refletissem, na captação técnico-estética
procedida, análogas propriedades em posicionamento, direção e interpretação
(expressões fisionômicas e gestuação) dos atores e figurantes.
Num filme em que tudo excede a
perfeição, as tomadas e imagens encerram, isoladamente ou em seu conjunto, a
máxima possibilidade estética que se
lhes pode infundir e extrair. Tudo é antológico. Não há meio termo. Um poema
imagético como nunca se fez e talvez nunca se fará igual. Nem em A Paixão de Joana D’Arc (La Passion de
Jeanne d’Arc, França, 1928), de Carl Theodor Dreyer, filme que em tudo o mais
se lhe aproxima e cuja grandeza estética e cinematográfica Jorge Luís Borges
não percebeu (ver “La Fuga”, in Borges em
/e/Sobre Cinema, organizado por Edgardo Cozarinsky. São Paulo, Iluminuras,
2000, p.67), e ao qual Evaldo Coutinho opõe improcedentes restrições formais
(in A Imagem Autônoma. São Paulo,
Editora Perspectiva, 1996, p.39).
A sucessão fática constitui o que de
mais seletivo e concentrado existe, transfundindo e fundindo, num só corpo,
conteúdo e forma, tema e modo.
O encadeamento sequencial dos
acontecimentos percorre a ordem cronológica, mas, é de seu cerne que é feito o
filme. O descontentamento e posterior revolta da marinhagem procedem-se internamente, como nebulosa que paulatinamente
adquire consistência e forma, não sendo esta apenas sua exteriorização ou
expressão, mas, seu próprio ser, como quer Fielding com a arte. Consolidada, a
insatisfação apresenta grau superior de conhecimento da realidade,
desencadeando-se face às violentas imposições superiores. Essa conscientização
materializa-se em revolta, que, por sua vez, conduz a patamar mais alto de
compreensão e percepção dos fatos.
A receptividade manifestada pelo povo
de Odessa, onde o encouraçado revoltoso atraca, confere à circunstância
dimensão que lhe transmite não apenas adição de apoiadores, mas, novos e mais
amplos conteúdo e natureza.
Se o episódio da escadaria de Odessa é,
em arte e não apenas em cinema, inexcedível, representando epopeia às avessas,
já que derrota do povo e não vitória de um herói, o que nele se fez - e passa a
existir - é nova visão da História, em que o povo, mesmo ou até por isso mesmo
esmagado, converte-se de objeto em sujeito, porque não é o resultado da ação
que tem validade e encerra significado, mas, a própria ação, desde que seja
libertária e processada coletivamente. Nada existe mais importante do que isso:
a permanente luta pela liberdade, igualdade e respeito humano. A evolução
histórica, desde seus primórdios, após vencida a etapa inicial de sobrevivência
e adaptação da espécie ao cosmo, não é mais do que a busca desses objetivos.
A cena final constitui abertura para o
futuro e o infinito, dizendo, em imagens, que a ação daqueles marinheiros não foi
em vão. Como também a ação no mesmo sentido de qualquer indivíduo ou grupos de
indivíduos. Ao contrário, somando-se, conduzem e transformam a sociedade.
O
Encouraçado Potemkin é síntese de fundo e forma, verdade e realidade, ação
e liberdade, vontade e vitória, humanismo e arte. No mais alto grau de concepção
e realização. É a beleza da imagem. Da imagem que fala e significa. Da imagem
discurso, mas, antes de tudo, da imagem visão.
Se o cinema é a arte da imagem em
movimento, O Encouraçado é a arte da
imagem. Não é apenas o melhor filme do cinema. É cinema. O que a maioria dos
filmes nega pelo menos três vezes, como são Pedro a Cristo, na intenção, na
concepção e na realização.
(do livro Clássicos do Cinema Mudo. Uberaba,
Instituto
Triangulino de Cultura, 2003)
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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista
internacional de poesia Dimensão de
1980 a 2000 (https://revistadepoesiadimensao.blogspot.com.br) e autor de
livros de literatura, cinema e história do Brasil e regional, publicando desde
setembro último um livro por mês no blog https://guidobilharinho.blogspot.com.br./