Aos poucos, as mangueiras e
outras árvores desaparecem dos quintais, das ruas, das avenidas, da cidade...
Vitória da sociedade de consumo. Triste vitória!
O quintal era bem grande, uma imensidão poética, sem muros, apenas uma cerca fajuta de arame, três fios, alguns postes desmilinguidos pra todo mundo saber que ali era o território de um casal de avós, que se levantava bem cedo, costume antigo, pra cuidar da hortinha e de algumas galinhas. Aos domingos, o casal recebia os filhos e netos para um almoço gostoso. As crianças se esbaldavam no quintal enquanto os homens conversavam na varanda e as mulheres na cozinha, uma estranha e arcaica divisão sem sentido. Nessa época, alguém plantou um caroço de manga Sabina num canto daquele quintal mágico, não se sabe quem, quando e que relevância isso tinha naqueles tempos.
O quintal era bem grande, uma imensidão poética, sem muros, apenas uma cerca fajuta de arame, três fios, alguns postes desmilinguidos pra todo mundo saber que ali era o território de um casal de avós, que se levantava bem cedo, costume antigo, pra cuidar da hortinha e de algumas galinhas. Aos domingos, o casal recebia os filhos e netos para um almoço gostoso. As crianças se esbaldavam no quintal enquanto os homens conversavam na varanda e as mulheres na cozinha, uma estranha e arcaica divisão sem sentido. Nessa época, alguém plantou um caroço de manga Sabina num canto daquele quintal mágico, não se sabe quem, quando e que relevância isso tinha naqueles tempos.
O
tempo passou, o pé de manga cresceu, o velho morreu, mas a casa continuou com a
família. Apesar de contrariada, a avó aceitou diminuir o quintal, concordou em
vender uma parte para pagar as despesas do inventário e, inconformada, viu um
muro ser erguido para separar o terreno. Teve a sensação de que seria
aprisionada no seu próprio universo. Pediu que a mangueira ficasse do lado de
“dentro”.
Os
filhos e netos continuaram alegrando os almoços de domingo. A sombra da
mangueira serviu de abrigo para muitas festas, para encontros e tardes
agradáveis, onde as divisões, sexuais, de idade e outras hierarquias, foram
mudando de significado. As cadeiras eram colocadas ao redor, as quitandas
vinham da cozinha, o chão ainda de terra, porém sem a horta e as galinhas.
O
tempo é implacável. As crianças cresceram, a mangueira também, e muito! Deu
frutos, caíram folhas... Alguém sugeriu que o chão de terra fosse cimentado
para dar menos trabalho à avozinha, já bem velhinha. Não perguntaram a ela se
essa era sua vontade. A mangueira passou a ser cenário de churrascos, de
reuniões políticas, com as bênçãos da matriarca, de brincadeiras, cada vez mais
raras, pelas poucas crianças que ainda frequentavam a casa, bisnetos de um novo
tempo, onde já não se permitia que os miúdos subissem nas árvores.
Um
dia, a avó faleceu. A casa foi alugada, virou um estabelecimento comercial, e a
família se dispersou mundo afora. A mangueira ficou sozinha, guardiã do passado
e das histórias. Uma vizinha reclamou da sujeira das folhas e das mangas que
podiam causar um acidente se caíssem na sua cabeça. Então, podaram sem dó,
cortaram os galhos, depenaram de forma humilhante a velha mangueira, para azar
das maritacas e dos bem-te-vis que ali faziam seu pouso vespertino.
Uma manhã dessas, eu acordei assustado. Um
barulho irritante de motosserra assustava o silêncio. Olhei pela janela e vi o
tronco indo ao chão. Dias depois, a casa foi demolida e o terreno transformado
num estacionamento. De teimosia, fui até o local e, irônico, sugeri um nome:
Estacionamento da Mangueira. Vez ou outra, eu passo por lá, para desafiar
minhas lembranças.
Renato Muniz B. Carvalho
Professor universitário e educador ambiental
Domingo (16/07/2017), publicada no Jornal da Manhã.