SUSPEITA
A
Imaturidade e a Irresponsabilidade
Guido Bilharinho
Mulher Inesquecível (Rebecca), de 1940. |
O
primeiro filme estadunidense de Hitchcock é Rebeca, a Mulher Inesquecível
(Rebecca), de 1940. Desde então prossegue sua atividade, atingindo o apogeu da
carreira no período de 1948 a 1962, ano de Os Pássaros (Birds), em que pesem
algumas obras anódinas e convencionais realizadas no período, como o
inqualificável Sob o Signo do Capricórnio (Under Capricorn, EE.UU., 1949) ou
como A Tortura do Silêncio (I Confess, 1952), mero filme policial apimentado
com amor proibido e no qual o vilão, preconceituosamente, é alemão, como será
francês em Ladrão de Casaca (To Catch a Thief, 1955) e comunistas soviéticos e
cubanos nos últimos filmes.
Se em Rebeca ainda está
excessivamente preso ao romance originário, por exigência, segundo consta, da
produção, em Suspeita (Suspicion, EE.UU., 1941), se não pela primeira vez, já
que se não conhece todos seus filmes britânicos, encontram- se os fundamentos
da concepção de futuras grandes realizações. Já há o suspense, que se
transformaria em marca registrada, bem como outros elementos de seu fazer
cinematográfico, a exemplo de planejamento minucioso do desenvolvimento
narrativo, de modo que atos e manifestações das personagens justifiquem,
prevejam ou antecipem suas consequências. Não ocorrem, pois, gratuidades,
improvisações e, muito menos, desperdício ou excesso de atos e diálogos. Não há
demasias, mas, também, não são obstaculizadas a espontaneidade e a iniciativa
das personagens conforme sua contextualização. Ao contrário, tais atributos não
só são preservados, como, mais importante, cultivados e expostos,
articulando-se a trama que, sem embargo de sua concentração sobre determinados
fatos, apreende o núcleo nodal da natureza humana.
Além disso, o que se tem de mais
antecipador dos grandes filmes do futuro, representando verdadeira linha
diretiva do cineasta e ponto central de sua concepção artística, é a
focalização de viés, falha ou qualidade da natureza humana, de suas
manifestações e possibilidades. No caso desse filme, a inconsequência, a
imaturidade emocional e intelectual e a irresponsabilidade do indivíduo.
Desse modo, como em suas grandes
obras, a estória e o próprio suspense não constituem (e nem assim devem ser
considerados) os aspectos mais importantes da realização.
Trama e suspense não passam de
meio ou de ambiência ficcional. Por trás ou além disso, o que se configura e se
constrói é o modo de ser das personagens pautado de conformidade com sua
constituição biotipológica, originando e derivando seus atos da índole de cada
um.
A partir daí arma-se o enredo,
que mais não é do que a demonstração fática da natureza humana individualizada.
O que se enfatiza não é o crime ou a ação, seu resultado e viabilidades, mas,
causas comportamentais e genéticas, já que da motivação socioeconômica não se
cogita. A trama emana e se organiza a partir desses ou sobre esses componentes
e não o inverso.
O indivíduo em ação, não
conforme circunstâncias e conjunturas, mas, de acordo com íntimas e pessoais
tendências e modo de ser.
Ao invés da personagem situada
(e sitiada) na e pela realidade, conformada a estritos limites, o indivíduo
criando e desencadeando outra realidade, uma realidade para si, provocada pelos
elementos preponderantes de sua estrutura biopsíquica.
Em Suspeita, o protagonista
concebe, organiza e desenvolve fantasia, não só sem fundamento na realidade,
como, principalmente, em frontal conflito e oposição a ela.
Na conexão desse choque, em
muitos casos irreconciliável, baseiam-se alguns dos principais filmes de
Hitchcock, que o são justamente por esses e outros atributos e características.
Entre eles, perfeito domínio e
dosagem dos recursos e possibilidades da linguagem cinematográfica, que se
ainda não plenamente exercitados em Suspeita - que contém claras limitações
técnicas e de produção – como posteriormente em obras futuras, evidenciam-se,
porém, tão nitidamente nesse filme, que é possível considerá-lo o predecessor
de todos os demais, por nele se encontrar, como lembrado, a matriz ou diretiva
central da grande obra do cineasta.
(do
livro O Cinema de Hitchcock e Woody Allen.
Uberaba,
Revista Dimensão Edições, 2017)
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Guido
Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de
poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema e
história do Brasil e regional, publicando atualmente no Facebook os livros
Obras-Primas do Cinema Brasileiro e Brasil: Cinco Séculos de História.