Primeiros Filmes de Júlio Bressane
Guido Bilharinho
O Insólito e o Enigmático
Sob a influência ou sugestão do título, A
Família do Barulho (1970), de Júlio Bressane, não se vá pensar em assistir
filme mentalmente burocrático na concepção e convencional na efetivação.
Ocorre justamente o oposto. Liberto de todas
as amarras usais, Bressane realiza película desataviada e invulgar, na qual
apresenta flagrantes relacionais familiares pautados pelo nonsense, mas, em que
desenvolve pelo menos duas linhas ficcionais que se articulam como ligamentos
de cenas e sequências: a contratação de odalisca e as reincidentes tentativas
da personagem representada por Helena Inês de ser aceita pelo protagonista que
a esnoba, não obstante sua beleza e dotes físicos.
Todavia, num filme anticonvencional no mais
alto grau, esses eixos diegéticos apresentam-se também incomuns e até mesmo
enigmáticos em decorrência da elisão propositada de causas e motivações de
certas atitudes das personagens.
Os relacionamentos são sempre conflituosos e
agressivos, não, porém, com raras exceções, sob o timbre costumeiro de
intrigalhadas e discussões prosaicas. Os conflitos são de natureza diversa,
decorrendo da constatação da natural animalidade do ser humano que, despido de
elaboração e amadurecimento emocional e destituído de controle racional,
estadeia-se na pura organicidade do viver, apresentando condutas e atitudes
incompreensíveis, se vistas e analisadas sob os parâmetros invocados, ausentes
da formulação e da estruturação fílmica, pautadas pela organicidade
concepcional e pela percepção da animalidade humana.
Por essa via, procede-se ferina crítica
contra a falta de sentido da vida da maioria dos indivíduos, já que expostos e
tratados pelo viés de congênita rudeza e grosseria.
É filme furioso, sem nenhuma complacência com
a recôndita e usualmente disfarçada natureza humana e totalmente indiferente à
aceitação e recepção pelo público, não lhe fazendo nenhuma concessão.
Não se insere nem se coaduna, por isso, com o
circuito comercial de exibição, onde os espectadores “normais” e convencionais
o repudiariam, em decorrência do condicionado e insalutar hábito desse tipo de
público de se comprazer apenas com a superficialidade, o facilitário, o
comadrismo e a intrigalhada da ficção produzida pela indústria do
entretenimento.
Por isso também é filme que apresenta, às
vezes, demorada fixação de cenas pela necessidade e importância da apreensão
atenta da imagem exibida.
Além disso, veicula cenas absolutamente
insólitas e enigmáticas como as do aeroporto e, principalmente, a algumas vezes
repetida e invocada sequência em que misteriosa mulher ignora e se afasta de
homem ajoelhado a seus pés em atitude implorativa, justamente o oposto do que
ocorre entre a personagem desconsiderada e o protagonista.
Enfim, filme que, como todo o cinema marginal,
resgata a liberdade e independência intelectual do artista numa sociedade
dominada pelo convencional, o manipulado e o espetaculoso, deformações que se
têm avolumado e agravado, a ponto de marginalizar e até exilar o saber, o
conhecimento, o estudo, o esforço, a criatividade e a inventividade.
(do livro Seis Cineastas
Brasileiros. Uberaba,
Instituto Triangulino de
Cultura, 2012)
______________
Guido Bilharinho é
advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão
de 1980 a 2000 e autor de livros de Literatura (poesia, ficção e crítica
literária), Cinema (história e crítica), História (do Brasil e regional).
*
(Brasil: Cinco Séculos de
História: toda quarta-feira novo capítulo -