O REI
DO BARALHO
Procedimento
Ficcional
Guido
Bilharinho
Já se
tem dito diversas vezes e em inúmeras oportunidades, que a ficção (literária,
cinematográfica e teatral) não se limita a estruturar e narrar estórias. Essa é
uma de suas possibilidades, por sinal, a geral e quase totalmente utilizada,
porque é a que agrada e se pensa ser a finalidade única e exclusiva do gênero.
Mais ou tão importante ainda, restringindo-se
à narrativa, é a maneira de se procedê-la. Normalmente, é efetuada convencional
e linearmente e arquitetada com início, meio e fim, sucedendo-se os atos,
capítulos e cenas em decorrência e/ou em continuidade uns dos outros.
Em O
Rei do Baralho (1973), Júlio Bressane mais uma vez foge desse esquema tradicional
e repetitivo para, subvertendo e fragmentando a usual sistemática discursiva,
conceber não simplesmente uma estória, mas, elegendo dada situação,
apresentá-la em quadros distintos, selecionados de conformidade com sua
importância e indispensabilidade para expor sentido e não meramente atos e
fatos.
Sucedem-se, então, conquanto em linha
evolutiva cronológica, cenas e sequências formadas de flagrantes isolados entre
si, porém, em seu conjunto e por força da sucessão temporal, compondo o quadro
diegético.
Nem se tem possibilidade de sintetizar
o eixo narrativo, visto que ele, por si próprio e por natureza, já é
essencializado e sintético.
Loira alta e esbelta (Marta Anderson)
apaixona-se por negro baixo e retaco (Grande Otelo), que se proclama o Rei do
Baralho.
O mais que se segue é constituído de
mosaicos aleatórios, compostos de cenas de jogos de carteado, diálogos entre o
casal, alguns propositadamente inaudíveis, bem como outros ocorridos entre
personagens apenas silhuetadas.
Cenas se repetem, além de muitas delas
serem fixadas demoradamente. Não havendo sequenciamento de causa e efeito, ou
seja, o acontecimento contemplado na tela não produzir consequências nem ter
continuidade lógico-temática, a composição da narrativa é deferida ao espectador,
que é obrigado a mentalizá-la e constituí-la de conformidade com sua capacidade
intelectiva de extrair das situações apresentadas o sentido que possuem e sua
significação no conjunto fílmico.
Esse procedimento elaborativo exige
igual esforço e capacidade do espectador. Não se lhe dá o alimento pronto a ser
digerido, mas, apenas – o que é muito – os elementos/ingredientes com que se
fazem ou se podem fazê-lo.
Há de haver, forçosamente, atividade
mental do espectador, sem a qual as imagens que lhe são exibidas não se revelam
em suas possibilidades, naquilo que são e significam, isto é, aproximação e
representação do real sem a intermediação facilitária do cineasta, simples
cozinheiro nos filmes convencionais, que só carece, ele próprio, de também
ingerir os alimentos artificiosos que produz, sem transferi-los (vendê-los) a
outrem. O que, aliás, poderia fazer sem prejuízo de quem quer que seja. Muito
ao contrário.
Em decorrência disso, esse filme não é
suscetível, à semelhança da maioria das demais obras de Bressane, pelo menos
dessa fase, de ser exibido comercialmente a plateias habituadas, condicionadas,
e mesmos viciadas, com o tóxico ficcional que lhes é comumente repassado.
É bem capaz, como já aconteceu com a
obra-prima A Regra do Jogo (La Règle
du Jeu, França, 1939), de Jean Renoir, de se tentar até incendiar o cinema,
embora o filme francês não apresente a radicalidade conceptiva de O Rei do Baralho.
Merece
ainda referência tópica, a circunstância das cenas de interiores revelarem-se
escuras e as de exteriores assaz claras, ambas quebrando, significativamente, a
comportada e rotineira técnica oposta.
Também nunca se viu Grande Otelo tão
sério, compenetrado e, felizmente, coloquialmente parcimonioso como nesse
filme.
(do livro Seis Cineastas Brasileiros. Uberaba,
Instituto
Triangulino de Cultura, 2012)
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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista
internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de Literatura (poesia, ficção e crítica
literária), Cinema (história e
crítica), História (do Brasil e
regional).
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