domingo, 5 de fevereiro de 2017

MARVADA PINGA


A família Borges de Araújo, pela sua honradez, pelo acendrado amor a Uberaba, é credora de todas as homenagens que a terrinha pode prestar a um dos ramos mais tradicionais que sempre propugnou pelo seu progresso, seu engrandecimento e crescimento populacional. Os Borges de Araújo detém uma árvore genealógica frondosa e muito ramificada. Borges casado com Araújo, Araújo casado com Borges, Borges casado com Cruvinel, Borges casado com Bento, Borges casado com Moraes, Borges casado com Prata, Borges casado com Oliveira, Borges casado com Cunha, Borges casado com Rodrigues da Cunha e por aí afora...O velho Abilio Borges de Araújo, nome de rua ( ou avenida?)no bairro da Abadia, foi um homem de coragem e empreendedor. Fazendeiro ativo, negociante de gado dos melhores, adentrava os sertões regionais, ``a procura das melhores cabeças de gado, machos e fêmeas. À acompanhá-lo nas viagens, um fiel grupo de peões, homens de sua inteira confiança e que, qualquer problema que houvesse nas suas andanças, resolviam a parada na hora e “à sua maneira”...entenda-se a dita cuja...
Lá pelos anos 40 do século passado, “seo”Abílio comprou uma boiada em Goiás, pelas bandas de Rio Verde e foi com a peonada, buscá-la. Seu irmão Totonho, também comprador de gado, adquiriu outra “partida”e seguiram juntos para aquelas ricas e férteis paragens. Totonho, na frente e um pouco mais atrás, o Abilio. Uma doença no gado começou a aparecer, peste ?, quem ia saber ?, o mano perdeu várias cabeças. Por um “estafeta”, tratou de avisar o irmão que vinha com a boiada bem mais longe. Ao receber o aviso, desorientado, com receio que a sua boiada “pegasse”também a doença, Abílio , que gostava e não dispensava uma “branquinha”, ordenou que a tropa parasse no primeiro “ponto”. Mal sabia ele que o “ponto”era uma aldeia de hansenianos , ou “doentes do mal” como se falava naquele tempo.Mesmo assim parou. Nervoso com o que podia acontecer com o gado, tomou umas doses meio avançadas da “água que passarinho não bebe”. Mais “prá lá do que prá cá”, convidou o chefe dos hansenianos a beber com ele.- “Mas, chefe”, ponderou o Vicentão.-“Que nada, vai buscar o homem, tô mandando”... Ordem dada, ordem cumprida.Beberam prá valer. Lá pelas tantas, Abílio, ofereceu ao doente os seus chinelos;depois, o colchão de dormir, em seguida, deu-lhe o prato e a colher que se servia nas refeições. Tudo na frente da peonada com cara de espanto e surpresa. No outro dia, não resistindo a tanta pinga ingerida, o doente morreu. Choro de todo o lado. Carregado pelos outros doentes no “bangüê”, um varal que carregava defunto, foi sepultado numa cova rasa à beira da estrada.
Refeito da bebedeira, contaram ao “seo”Abílio, o que acontecera com seu “amigo”de véspera.Espantado, incrédulo, ouviu a história que os peões lhe contaram e que ele dera ao doente, seus chinelos, prato,colher, colchão, tudo do seu uso pessoal; o velho Abílio não se conteve:
-“Homem ingrato, sem consciência, abusou de mim e da minha pinga !Gente, pelo amor de Deus, joga os chinelos fora, queima o colchão, enterra o prato e a colher...” implorou, com o coração quase saindo pela boca. Mais que depressa, colocou a tropa na estrada, comendo poeira e só veio a tomar fôlego nas barrancas do Paranaíba, encostado em Itumbíára..Assim mesmo, sem olhar para trás...


Luiz Gonzaga de Oliveira